Educar para a diferença (e para o amor-próprio)

As minhas filhas começaram a reparar na minha perna aí por volta dos 3 anos. Até lá, eu era simplesmente perfeita aos seus olhos. É claro que nunca me passou pela cabeça esconder-me delas, mas estava curiosa – e um pouco receosa – pela forma como iriam acolher a diferença na mãe.

A Inês começou por perguntar se as minhas cicatrizes nunca iam passar. Quando percebeu que não, passou a ser um facto consumado que a mãe tinha cicatrizes e pronto. Com a mesma idade, a Alice engraçou com o meu dedo grande, que está sempre encavalitado no outro. Vinha ela e puxava o dedo para o lado. “Pronto, mamã, já está direito”. Mas o dedo teimava em retomar a posição e ela ralhava com ele, “Dedo maroto!”. Eu deixava, achava piada que me quisesse consertar. Com quase cinco anos, já percebe que o dedo é mesmo teimoso e não vai ficar direito por muito que ela tente, mas de vez em quando lá vem ela tentar endireitá-lo.

Com a Inês a caminho dos 8, as coisas já são mais complexas. À medida que foi crescendo e medindo a vida à sua volta, começou a fazer outro tipo de perguntas. Porque tens uma perna mais fina? Porque tens um pé mais pequeno? Dói-te? E coisas do género. Fui tentando responder sempre de maneira a normalizar a situação. Ou seja, sim, eu tenho uma perna diferente, mas isto para mim é normal e para ti também deve ser. Nem sempre consigo. Não reajo muito bem, por exemplo, quando ela aponta o meu pé às amigas e diz: Já viste, a minha mãe tem um pé mais pequeno do que o outro. Sinto-me pequena, mais pequena do que o meu próprio pé, e tenho vontade de lhe tapar a boca com fita cola. Normalizar, Mónia, normalizar.

Também não sei muito bem o que dizer quando ela demonstra pena de mim. No outro dia, estávamos a ler uma história qualquer com umas ilustrações meio cubistas, em que uma menina tinha pernas de altura e espessura diferentes. Diz ela, “Esta menina tem uma perna mais grossa do que a outra”. “Olha, é como eu!”, respondi eu, num tom talvez demasiado esfuziante. Ela olhou para mim e o seu olhar inundou-se de uma espécie de pena, ou terá sido compaixão? “Pois”, respondeu ela, com aquele jeito de comiseração de quem não sabe o que dizer perante a infelicidade alheia. Era impossível não reparar, era urgente intervir. “Estás com pena de mim?”, perguntei eu. “Acho que sim”, respondeu. Fiz-lhe algumas perguntas para lhe mostrar porque é que não havia razão para ter pena. “Achas que eu sou infeliz por ter a perna assim?” – Não; “Achas que eu tenho vergonha da minha perna?” – Não; “Já sei, se calhar é porque sabes que tenho dores, não é?” – Sim. “Mas as dores passam, não há razão para teres pena, pois não?”. E aqui ela encolheu os ombros e disse: “Oh, na verdade eu não sei bem o que significa ter pena”.

Nesse momento, se eu fosse psicóloga ou intelectualmente iluminada, ter-lhe-ia explicado a diferença entre pena e compaixão. Mas limitei-me a abraçá-la, dar-lhe um beijo na testa e dizer: “É um sentimento difícil de sentir e explicar. Falamos sobre ele outro dia” e continuei a história. Deixá-la reflectir sobre isso (a sementinha ficou lá) e deixar-me a mim também preparar-me para isto. Se quero que as minhas filhas não tenham pena de mim, eu própria tenho de deixar de ter pena de mim. Se quero que as minhas filhas aceitem a minha diferença como normal, como parte de mim, eu própria tenho de aceitar a minha diferença como normal, como parte de mim. Se eu quero que as minhas filhas gostem delas tal como são, eu tenho de lhes mostrar como se faz isso pelo meu exemplo.

Agora já percebo o que quis dizer a minha médica quando eu a informei, de lágrimas nos olhos, que ia ter outra menina (eu sempre quis rapazes, vai o universo…). Disse-me que eu tinha agora uma excelente oportunidade de criar mulheres fortes, cheias de auto-estima e amor-próprio, que o mundo bem precisava delas. Confesso que naquele momento não alcancei. Mas, hoje em dia, só posso agradecer ao universo. E o melhor é que, para isto, não preciso de manuais de instruções, livros sobre parentalidade ou mezinhas caseiras. Está tudo em mim.

Posts relacionados

3 comentários

  1. Ao tempo que eu ando para escrever isto: admiro-te tanto!
    Ao ler os teus últimos post, sobre a tua perna, ainda mais. És uma mulher incrível.
    Um dia, com tempo, falo-te sobre a minha tia-avó, que por nunca se aceitar como era (com uma perna diferente e tudo) passou ao lado da vida.
    Que sejas uma inspiração para outras pessoas, como tu, como eu, como cada um de nós, com dificuldade em aceitar as suas (mais ou menos pequenas) imperfeições.
    Como se diz por aqui, bem hajas!

    1. Obrigada, Ema ☺️ Gostava de saber mais sobre a tia-avó e tenho muita pena que nunca se tenha conseguido aceitar. É libertador quando o fazemos e só temos pena de não o termos conseguido mais cedo. Mas envolve tempo e… coragem. Não é nada fácil. Por isso as tuas palavras significam tanto… Obrigada, mesmo.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *