Mães e filhas

Sempre que eu ou uma das minhas filhas fica doente ou se aleija, a minha mãe pergunta-me: «Então, filha, como foste arranjar isso?». Já estou muito habituada a ouvi-lo e não devia ligar, mas a verdade é que entendo sempre uma nota de acusação por trás da pergunta. Não é um «Então, filha, como é que isso aconteceu?», que seria algo perfeitamente adequado no contexto de uma lesão, perna partida ou fractura exposta. Também não é um «Então, filha, onde é que apanhaste?» ou «Quem é que te pegou?», no caso de qualquer doença infecciosa e contagiosa. Não. É mesmo um «Então, filha, como foste arranjar isso?» ou na variante também muito comum «Então, filha, como é que fizeste isso?», o que, francamente, não deixa grandes margens para dúvida de que a grande culpada sou eu, mãe negligente e desastrada que se deixa infectar com covid e ainda infecta as filhas. Uma vez, disse-lhe que me sentia incomodada com o tom de acusação, ao que ela, ressabiada, se escudou logo com «é só uma maneira de dizer».

Agora que apanhei covid, mais de dois anos depois de a doença ter chegado a Portugal – já ter conseguido fintar a doença durante tanto tempo foi um feito -, a minha mãe voltou à sua velha «maneira de dizer». Eu, grandessíssima burra, que me deixei infectar numa viagem que nem queria fazer, porque gosto de andar aos caídos pela casa de lenço na mão e nariz a pingar, cansando-me só de estender a roupa e sem paciência para nada. Há gente assim, fazer o quê, é pespegar-lhes com um autoteste pelas ventas para ver se acordam para a vida.

À minha filha mais velha, que tem o dom da inconveniência e da perspicácia, o que nem sempre joga bem, não me apeteceu explicar que a relação entre mães e filhas nem sempre é fácil, porque cada uma acha que tem sempre razão. Infelizmente, acho que ela há de lá chegar sozinha.

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Aparelho

Senti frio pela primeira vez este outono, ao ponto de ter ido a casa mudar de casaco à hora de almoço. Escrever isto a 2 de novembro faz parecer que vivo em Los Angeles ou assim, onde o clima é sempre ameno. Mas é mais assustador do que isso, embora eu ache que viver em LA qualifique como assustador q.b.

Neste dia, aconteceram outras coisas dignas de nota, como a mais velha ter posto aparelho, o que nos dá licença para atirar para o lixo, à vista de todos e não às escondidas como fazíamos nos outros anos, as gomas que sobraram do pão por deus, porque ela agora não pode comer nada dessas porcarias. Curiosamente, ficou mais preocupada em pôr uma foto com o aparelho nos estados do Whatsapp do que com o facto de não poder comer doces nos próximos 18 meses, mas creio que lhe vai cair a ficha em breve e os estados só duram 24 horas.

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Gémeas falsas

Às vezes, custa-me a crer que ambas as minhas filhas tenham mesmo nascido de mim (apesar de eu estar acordada e perfeitamente lúcida no parto, mas podem ter-me posto alguma coisa na epidural) e e penso que só podem ter vindo de galáxias diferentes. Não é só terem traços físicos distintos ou gostos completamente díspares, é também a forma como reagem às coisas.

O pai partiu hoje para mais uma volta em de bicicleta ao Caminho de Santiago. Vais estar cinco dias fora, o que não é nada tendo em conta outras aventuras passadas que duraram mais tempo. Uma das filhas ficou na maior, nem sei se se terá dignado a pensar muito no assunto para além de facto 1: o pai vai estar fora, facto 2: eu fico com a mãe, tendo-se despedido dele como se o voltasse a ver ao final do dia. Para a outra, foi uma hecatombe e eu, que me custa tanto vê-la sofrer, prometi-lhe, enquanto pensava está-se mesmo a ver quem é que, das duas, vai ter mais problemas no futuro com desgostos de amor e amizade, que hoje à noite íamos jantar no sofá a ver um filme e que a deixava comer com as mãos. Portanto, vai ser uma festa nos próximos 5 dias.

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A primeira playlist

Lá em casa, há todo o tipo de gostos musicais. A mais nova é fã de D.A.M.A. e Ricardo Reis Pinto, a mais velha só gosta de ouvir a Megahits, o que diz muito da sua música preferida, o pai gosta de Bob Dylan, Leonard Cohen e Cat Stevens (e tudo o que veio antes disso) e eu sou a tipa incompreendida de Nick Cave e do indie rock. Costumo pensar que o que interessa é elas gostarem de música e não propriamente a música que ouvem actualmente. Os gostos mudam, mas a música deve estar sempre presente.

Foi assim que, ontem, apresentei o Spotify à minha filha mais velha. Criei-lhe uma conta, a fingir que tem mais de 18 anos, e ensinei-a a procurar músicas e a criar playlists. Isto porque durante a semana não se acende a televisão nem o Youtube lá em casa. Mas pode-se ouvir música.

Passado um bocado, chamou-me para ver a sua primeira playlist. Entre os Justins Bieber e as Carolinas Deslandes da praxe, havia uma ou outra influência da mãe (Capicua e Jain) e muita brasileirada. Para minha surpresa, encontrei a “Oração”, da Banda Mais Bonita da Cidade, que duvido que tenha passado na Megahits alguma vez.

-Tu conheces isto?
-Conheço.
-Mas de onde é que conheces esta música?
-Sei lá, conhecendo.

Bom, acho que é assim que se começa, não é?

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A ternura de Inês

Eu sei, até parece mal. Escrevo um post dedicado à filha mais nova, depois do seu quarto aniversário, e não faço o mesmo pela filha mais velha, depois do seu sétimo aniversário. Não é por mal, claro está, nem por eu gostar menos dela. Foi o raio do final do ano passado e o estranho princípio deste, é ela fazer anos tão perto do Natal e quase não haver espaço para respirar entre festas, foi só ter parado agora para alinhavar ideias e perceber que me faltava algo muito importante para fechar o ano.

A minha Inês, a minha primogénita. A minha companheira das histórias e dos jogos de cartas. A minha companheira de Berlim. Ainda relembro a nossa viagem com todo o carinho de que sou capaz. De tudo o que podia correr bem, correu melhor ainda. Ela revelou ser a pequena companheira perfeita, curiosa e interessada. Lembro-me de uma noite, quando saímos de um restaurante crudívoro, cujo repasto ela recusou delicadamente depois de ter provado algumas iguarias (nem eu estava à espera de mais…

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