Lembra-te disto

A natureza tem várias maneiras de, ao longo do ano, me ir relembrando de que há ciclos e um rumo natural que certas coisas seguem, mesmo quando parece que tudo o resto se desnorteia.

É o caso da aranhas de sangue que aparecem em maio, minúsculas e metediças, enchendo as paredes e pintalgando os parapeitos; é o caso dos besouros no verão, que parecem emergir da terra à noitinha, voando desorientados numa louca dança de acasalamento; ou das libelinhas, que em setembro rumam a terras mais quentes, cruzando os céus de Sesimbra em voo raso, ou ainda das flores cujo nome desconheço e que despontam sempre por esta altura, lembrando-nos de que há beleza no fim do verão.

Agarro-me a estas certezas quando me sinto fora de pé. A vida tem sempre forma de repor o sítio às coisas.

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Quarenta e um

Escrevo-vos com 41 anos. Os sinos não repicaram, nem fui notícia no diário da terra, mas tive um dia muito bem passado em que me encheram de mimo e eu enchi a pança, a ponto de me sentir qual lobo mau a quem coseram a barriga cheia de pedras para que se afundasse no rio. Não me afundei, felizmente, só precisei de alguns dias para me recompor da azia. Parece que tudo demora mais a passar a partir de uma certa idade: uma gripe, uma ressaca, um repasto mais abundante; só o tempo passa depressa – sinal disso é que já levamos mais de um ano em pandemia e cá andamos a tentar, pela segunda vez, voltar à normalidade como se fosse a primeira.

Desde que voltei às redes sociais, depois da minha quaresma digital, tenho lido muito menos blogues e deixei de fazer aqui o meu registo fotográfico da semana ou de escrever os meus “diários”. Ocasionalmente, lembro-me de que gostava de vir aqui falar das coisas simples, contar como correm os dias, fazer o relato da horta ou das coisas saudáveis que tenho andado a comer (ando obcecada com a confeção da crepioca perfeita, mas poupo-vos a uma série de considerações a esse respeito). Mas nunca venho, porque ando ocupada com o meu trabalho, com a horta, com os treinos, com os meus cozinhados, com as miúdas, com o esquentador, que está sempre a fazer das suas, com a gata e as pulgas que traz para a cama da Alice e com o carro velho, que adora prender-me no interior, e o novo que só chega no outono. Na minha ausência, a vida continua, a minha e a dos outros que, da sua, nos deixam ver aquilo que querem que vejamos. Já eu sou muito transparente e sei que isso também não é bom, mas não é coisa que a idade me tenha ensinado a mudar. Acho que vou ser sempre assim: uma porta escancarada. Entrem e ponham-se à vontade.

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Páscoa

Nunca liguei muito à Páscoa. Em criança, esta altura era sinónimo de tigelas cheias de amêndoas que eu nunca comia ou folares desengraçados com aquele ovo no centro que nunca ninguém queria; significava também aquela interminável manhã de domingo em que os desenhos animados eram substituídos pela Eucaristia, com aquelas imagens lúgubres de Cristo na cruz, aquele coro enfadonho de vozes a repetir as mesmas ladainhas que me deprimiam, aquelas procissões na aldeia que me metiam medo. A Páscoa, por oposição ao Natal, era triste e pesada; morte ao invés de nascimento; não havia prendas e nem sequer os doces eram bons. A única Páscoa que teve sentido para mim, já crescida, ainda antes de ser mãe e de ter mandado vir o coelhinho da Páscoa, passei-a sozinha, no meu T1 em Berlim, a reflectir seriamente sobre se não teria chegado a altura de dar por terminada a minha vida de emigrante e regressar ao meu país.

Hoje em dia, a Páscoa continua a não ter grande significado para mim. Não sendo religiosa, é-me difícil dar a esta época outra importância que não mais uma possibilidade de reunir a família (mesmo que com restrições, pelo segundo ano consecutivo), e de repetir tradições: a caça aos ovos na manhã do domingo de Páscoa, o folar de erva-doce que nos chega da terra e que eu aprendi a apreciar, o Porto para aconchegar o cabrito que se desfaz na boca.

Este ano, continuámos confinados, mas com Sol e cheiro a Primavera bem entrada. Eu de camisa branca fina a roçar-me ao de leve na pele, ele de óculos escuros e barba de quarentena, elas com os seus fatos domingueiros, mãos sujas das brincadeiras na terra e a pele picada por bichos invisíveis, aproveitámos a tarde, felizes por estarmos juntos, expectantes pelo desconfinamento que se avizinha e as pequenas vitórias de liberdade que estamos ansiosos por saborear (uma esplanada, uma livraria, um almoço com um casal amigo). Vamos ver por quanto tempo, há sempre alguém mais pessimista que vaticina, mas eu já só penso no Verão. Até lá, tenho um novo livro para traduzir, uma nova horta para tratar, uma nova pérgula para montar e três meses inteiros de primavera à minha frente.

Foi uma boa Páscoa.

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diário 21 #2

Ainda bem que fui ao cabeleireiro a semana passada. De cabelo cortado e pintado, buço e sobrancelhas feitos, aqui a “senhora da loja” – nome que recebi da Alice quando viu o meu novo corte de cabelo e que eu assumo, mesmo que um pouco contrariada, porque devo admitir que o cabelo ficou meio esquisito – entrou em confinamento minimamente apresentável, não vá ser preciso falar com o carteiro ou ir a um dos 52 tipos de estabelecimentos comerciais previstos nas exceções.

Com as miúdas na escola, cheira-me que é desta que vou conseguir trabalhar descansada, ler mais, fazer pão, cozinhar receitas novas, tirar um curso.

Vida boa.

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Perdas

Houve uma altura, no final do verão, em que achei que, afinal, este ano não ia ser assim tão mau e que me ia ficar na memória também por outros motivos que não simplesmente a pandemia que nos virou a vida de pernas para o ar. Tinha engravidado do nosso terceiro filho depois de dois anos a tentar. Após a surpresa inicial – porque, apesar de termos passado algum tempo a tentar, para o fim já tínhamos desistido e foi neste estado de descontracção que a coisa se deu –, ficámos muito felizes e foi inevitável não começar logo a fazer planos e a imaginar formas originais de contar a novidade às nossas filhas e ao resto da família.

Mas não houve tempo. Perdi o bebé às oito semanas e, também pela forma desumanizante como fui tratada no SNS (agora vai para casa abortar sozinha e sem apoio, e volta cá daqui a dois dias para ver “se já saiu tudo”), entrei num buraco fundo, escuro e húmido, do qual consegui sair graças à vida à minha volta que chamou por mim e me deu a mão. Já reflecti muito sobre tudo, revisitando todos os dias cada palavra da médica, os pressupostos – tão errados – em que baseou o atendimento que me prestou, a forma cruel como assumiu que eu já sabia o que estava a acontecer com o meu corpo, que inclusivamente o desejaria e para o qual teria contribuído, e como me tratou, a mim, como mais um número e à vida que se desenvolvia dentro de mim – e agora se desfazia – como um determinante indefinido: volte cá daqui a dois dias para ver se já saiu “tudo”, palavras que ecoam continuamente na minha cabeça, como um disco riscado, volte cá daqui a dois dias para ver se já saiu tudo, quando estou a tomar banho, quando estou a conduzir, quando estou a jantar, volte cá daqui a dois dias para ver se já saiu tudo, o meu terceiro filho resumido a um tudo-nada, um mero bloco de coágulos e tecidos indesejáveis, qual quisto ou tumor, uma massa inconveniente, maléfica, maligna que, no final de três dias numa espécie de trabalho de parto caseiro, me haveria de escorrer pelas pernas sem qualquer pré-aviso da forma que poderia ou não ter ― e uma das muitas conclusões a que chego diariamente é que talvez nunca deixe de ouvir estas palavras a ressoarem na minha cabeça.

Posto isto, não me consigo lembrar de coisas boas que compensem o ano de merda que tive. É claro que tenho um tecto para viver, duas filhas maravilhosas, um homem espectacular que esteve sempre ao meu lado neste momento difícil, não me falta dinheiro para o que é preciso nem desafios interessantes no trabalho. Tenho razões de sobra para estar grata pela vida que tenho, mas a minha percepção de 2020, a imagem que fica daquilo que foi o meu ano, daquilo que eu vivi e senti é, fria e simplesmente, uma amálgama de perdas: perda de liberdade individual, física e social imposta pela pandemia e a perda de esperança inerente, perda de um ente querido no final de Novembro, e o sentimento excruciante que fica após a perda de um filho (eu sei que só tinha oito semanas, mas o vazio que me deixou na barriga não é menor por isso).

Portanto, não tenho motivos para festejar o ano que passou – nem os quero arranjar para ser sincera. O que aconteceu aconteceu, é um facto inegável e nada do que eu possa fazer ou dizer vai mudar aquilo que se passou, a forma como aconteceu e o peso que deixou em mim. A única coisa que posso fazer é aprender a viver com a dor, a geri-la em mim, a doseá-la até que seja suportável. Transfiro tudo isto para a vida prática, para a máquina incansável do dia a dia, dos prazos e das datas que me fazem avançar. Tenho um livro para acabar de traduzir até ao final do ano, tenho uma mini festa para organizar à minha filha de quase dez anos daqui a três dias, tenho uma noite de Natal em que me deixam ir ver os meus pais e tenho o Ano Novo que, se calhar, vou passar a dormir. O que eu não quero é criar grandes expectativas para o novo ano que se avizinha. No ano passado estava cheia delas e foi o que se viu.

(Ele acha que preciso de falar com o psicólogo. Talvez vá, para o ano. Para o ano há de ser melhor.)

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