Sem alarde

Estava a ouvir o Fala com Ela com o Miguel Esteves Cardoso e, às tantas, ele fala sobre a utilidade da tristeza, que serve para nos sentirmos vivos e devemos abraçá-la para sentirmos que ainda conseguimos sentir. É o meu resumo, ele não disse isto assim, mas daquilo que os outros dizem nós retiramos sempre aquilo que nos convém.

Nos últimos dias, tenho-me sentido uma espécie de traidora do meu próprio luto. Depois de duas semanas, já estava a tentar fazer yoga, já tinha voltado aos meus sumos verdes; estive apenas 20 dias sem aparecer nas redes sociais, pelo menos não com publicações próprias, e quem me vir na rua já não diz que carrego um peso às costas. Já não sinto tanto que me foi tirada uma coisa; agora sinto que foi aquilo que foi, uma inevitabilidade para a qual a ciência ainda não tem explicação.

Mas como contabilizar o luto? Ou melhor, o luto contabiliza-se? Há um número mínimo de dias durante os quais temos de estar tristes para que a nossa tristeza seja validada?

Depois ele fala sobre a necessidade de escrever para chamar a atenção. Mas eu tenho pensado nela como uma necessidade de cicatrização. Chamaria a atenção se fizesse alarde destes posts nas redes sociais. Como não faço, não sei quem é que cá vem, mas desconfio que seja ninguém. E acho que está bem assim. 

Seja como for, apetece-me retomar a emissão normal da vida. Tenho podcasts e séries para recomendar. Que a vida tenha sempre uma parte mundana onde nos possamos encher de ruído branco (mesmo, especialmente, em confinamento) .

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Tente novamente mais tarde

O meu Feedly anda depauperado. Tirando a Calita e a Mãe Imperfeita, com a sua rubrica hilariante, já ninguém escreve regularmente num blog. Nem eu, que não punha os pés aqui desde Junho. Fui de férias, é verdade, e tenho andado à procura de solo firme na era do Novo Normal, mas o facto é que eu e dois terços da blogosfera substituímos os posts por instantâneos simples e rápidos do Instagram. Há quem até publique autênticos testamentos como legenda de uma foto, mas depois actualizar o blog está quieto. Sou capaz de já ter feito o mesmo.

Hoje, ao ver que o À Paisana tinha voltado a escrever (e logo dois posts numa semana), deu-me uma vontade inesperada e inexplicável de voltar a escrever no meu. Graças a ele, descobri As Senhoras da Nossa Idade que me levou a outros blogs que – milagre! – têm escrito com relativa regularidade, ou seja, o último post não data de 2016.

Gosto de ler blogs, e também gosto de ter um. Mas ultimamente a falta de tempo ou de vontade de esmiuçar a minha vida em praça pública (como se não houvesse outra forma de ter um blog) tem-me afastado deste canto. O meu Instagram, contudo, mantém-se prolífero, o que, se virmos bem, revela alguma falta de coerência. E ando sempre nisto, escreve, não escreve, retoma o blog, não retoma, e todas as tentativas de escrever com regularidade têm caído em saco roto. Será esta mais uma?

Seja como for, gostava de voltar a ler blogs e cansa-me abrir o Feedly e ver um buraco negro. E vocês, ainda lêem blogs? Quais? Vá lá, contem-me tudo.

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Coisas sérias

Foi precisa uma coisa séria para me trazer de volta ao blog.

A minha vida está cheia de coisas sérias, que não me tomem por leviana. Mas as coisas sérias da minha vida têm a vantagem de poderem ser, melhor ou pior, controladas por mim. Dependem de mim, fui eu que as desejei ou que, mesmo não desejando, causei. O que não quis ou causei foi o coronavírus que pôs a Europa, o mundo, em polvorosa. E o pior é que não consigo controlar nada disto. Fora o isolamento voluntário a que já nos submetemos em família e as medidas de higiene sempre que os adultos tiverem mesmo de sair de casa, resta-nos esperar: esperar que passe e esperar que passe ao lado, que não nos afecte directamente, a nós ou a nenhum dos nossos, pais, sogros, tios, primos, amigos, vizinhos.

Os últimos dias foram de grande angústia. A cada hora havia novidades. A cada hora as medidas de contingência aumentavam. A cada hora estávamos cada vez mais cientes da nossa fragilidade. Quase que chorei por ver que as minhas filhas têm de viver isto. E isto assusta-me. Não me assusta ter de ficar em casa e tentar não puxar os cabelos a ninguém ao fim de três dias. Não me assusta não poder sair, ir ao ginásio, ir beber um copo, ir ao parque com as miúdas. O que me assusta é a fragilidade humana.

Isto vai passar, é verdade, não é uma bomba atómica, não é uma guerra mundial, não ficámos desalojados nem somos obrigados a atravessar o Mediterrâneo num barco sobrelotado com as nossas filhas. Penso nisso, penso nelas, tão seguras no seu “isolamento voluntário”, com um quarto cheio de brinquedos para que não se aborreçam, com a despensa abastecida com todo o tipo de comida para que nunca passem fome, com uma lista de actividades para as próximas semanas para que se façam umas mulherzinhas. Penso em nós, em termos globais, como andamos sempre tão à vontadinha, a achar que nunca é connosco, que nunca nada nos afecta, que não é preciso repensar a forma como fazemos lixo porque a destruição do planeta ainda é uma miragem, que mais vale ir à praia do que ir votar porque, de qualquer maneira, é tudo uma cambada, que não precisamos de ser cívicos ou viver bem em comunidade, porque só temos um umbigo e é nosso.

Isto – o que estamos a viver agora – (ainda) não é nada. Não é nada em comparação com a Peste Negra ou com o que se deve viver nos campos de refugiados na Grécia. Não é como se vivêssemos na iminência de os Nazis nos virem arrancar de nossa casa para nos mandarem para um campo de concentração ou nos matarem ali mesmo. Não é nada disso. É só ficar em casa durante algumas semanas e seguir o mínimo dos mínimos. Resguardarmo-nos. Proteger os nossos dos outros. Proteger os outros dos nossos. É só isto. Mas pode ser que seja o que fazia falta para nos pôr a repensar a nossa forma de viver aqui, como um todo. Porque a mim já está a dar que pensar. E ainda agora começou.

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O meu ano vai bem

Estou sempre a encontrar pessoas conhecidas em Sesimbra. É impossível ir almoçar a qualquer lado com ideias de ler um livro enquanto almoço sossegada. Há sempre alguém que frequenta o mesmo restaurante que aparece a meio do almoço, que convido a sentar-se na minha mesa, com quem troco dois dedos de conversa. Nos dias em que, como hoje, até consigo ter um almoço sem companhia, encontro pelo caminho várias pessoas que conheço daqui e dali, algumas só de vista, outras com direito a cumprimento. Vinha a pensar nisto na vinda do almoço, quando passo por uma esplanada frequentada habitualmente por homens mais velhos com uma mão cheia de tempo e a outra mão vazia de pontas de cigarros, que se sentam virados para a estrada a discutir uns com os outros sem realmente se olharem. Chamou-me a atenção o facto de haver uma mesa cá fora posta para almoço, com dois homens de sobretudo e óculos de sol a regarem o peixe com azeite. Olhei para eles com mais atenção. Só podiam ser estrangeiros. Só os estrangeiros têm o prazer que falta aos portugueses de usarem as esplanadas em dias de sol de inverno, nós que temos sempre tanto frio num país tão quente. Estava eu nisto, dizia eu, quando, mesmo ao passar rente à mesa, um dos estrangeiros vira a cara e o reconheço. No balão por cima da minha cabeça surgiram rapidamente vários OMG! OMG!! OMG!!! assim que percebi que era o Tom Barman, o vocalista da banda belga dEUS que venerei no início da minha vida adulta. Quase que hesitei. Afinal fomos apresentados há uns dois anos, num final de tarde de verão em Sesimbra. Mas é claro que ele não se iria lembrar de mim, Hey, I’m the girl with the beautiful name, remember me?, tenho lá em casa um guardanapo de papel para provar que nos conhecemos. Duh. Talvez se das minhas resoluções para 2020 tivessem feito parte audácia, ousadia ou, simplesmente, esforços para perder a timidez, teria falado com ele. Como o ano já começou há oito dias e tudo permanece igual, passei por ele como se nada fosse e atravessei a estrada a fingir que não ia com o coração aos pulos.

O meu ano vai bem, e o vosso?

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38

Voz de rádio

– Lês sempre assim? – perguntou-me ele, depois de eu ter acabado de ler o excerto para análise. “Pronto, apanhou-me”, pensei. “Que palavra terá denunciado a minha má dicção? Será que fui sopinha de massa?” (Há determinadas palavras, ou sequências de palavras, que, encontrando-me eu num estado menos concentrado, realçam o indecoroso roçagar da minha língua nos dentes. Vezes há em que isto me deixa bastante desconfortável.)

– Como assim? – gaguejei, tentando arranjar tempo enquanto rodava o anel entre os dedos como se fosse a corda de um relógio que eu pudesse fazer andar para trás.

– Tens voz radiofónica. Pela forma como dás entoação às frases, parecia que estava a ouvir uma radionovela.

Não era, de todo, isto o que eu estava à espera de ouvir. Isto era uma espécie de elogio e há uma certa preparação mental necessária para receber um elogio – eu não me tinha preparado. Gracejei qualquer coisa como ter passado ao lado de uma carreira na rádio e censurei-me por ter tanto medo de tudo. Já íamos a meio do curso e ainda não me tinha feito ouvir. Não lera nada meu, tão pouco me voluntariara para ler algo dos outros. É uma característica minha precisar de algum tempo para me soltar. Não havendo nada de mal nisso, o problema é que gasto a maior parte do tempo a pensar no que vou dizer e o resto do tempo a culpar-me pelo que disse, ou não disse, e acabo por nada dizer. É um processo difícil este de arrancar a culpa de dentro de mim, que nasce e se propaga sem que eu tenha mão nela. Mal comparado, é como uma praga de piolhos que se detecta demasiado tarde e que depois requer doses abundantes de tempo e paciência para catar os parasitas. Tal e qual a minha culpa. Ultimamente ando a catá-la aos poucos.

Serviu o elogio para que decidisse ler o que me fora mandado escrever em casa: uma ideia, tão somente a ideia, para um romance. Eu apenas tinha ideia para um conto, que estava quase escrito, mas faltava-lhe o fim. Comecei por desculpar-me (caramba, faço sempre isso! ) e decidi improvisar (caramba, nunca faço isso!) para dar ao ex-conto a amplitude de futuro romance.

– Caramba, isso bem escrito dava um best-seller – disse ele. (É capaz de não ter dito caramba, mas eu quis enfatizar o momento. Foi o segundo ponto alto do dia que, convém dizer, fora bastante merdoso até à parte radiofónica).

No dia seguinte, na aula de cycling, enquanto desempenhava mecanicamente os movimentos orientados pela instrutora, realizei em 45 minutos aquilo em que ando a pensar há um ano. Está tudo lá: princípio, meio e fim. Tenho cenas inteiras escritas na nuvem do meu cérebro e, agora que já sei que forma tem, o livro que há de ser vai comigo para todo o lado. E, sim, também é sobre a culpa. Ou não venha a ser um livro escrito por mim.

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