Que nem cogumelos

Sempre que espreito o LinkedIn, luto com um sentimento de inadequação e de estar sempre a correr atrás da última carruagem. Os outros tradutores e revisores parecem sempre mais produtivos e eficientes. Todos os dias, têm um rol de obras revistas ou traduzidas para apresentar. Pergunto-me como o fazem. Será que passam os dias e noites a trabalhar, para conseguirem apresentar produção tão invejável? Ou será que foi tudo obra do acaso e terão, como eu, obras há muito acabadas que foram sendo proteladas pelas editoras e viram, não como eu, de repente, a luz do dia — e em catadupa?

Eu, que até cumpro um número bastante respeitável de palavras por dia, vejo-me há largos meses sem obras para apresentar. Tenho seis no prelo, como se diz, que muitas vezes é um eufemismo para encobrir a falta de tempo dos editores ou de dinheiro das editoras, para as escolhas imprudentes que fizeram em tempos de vacas magras ou para o surgimento de nomes mais sonantes que se sobrepuseram. Talvez um dia venham a ser publicadas, e quem sabe também em catadupa, e eu possa incluí-las no meu modesto portefólio e criar nos outros a mesma sensação de que, das minhas mãos, as traduções saem que nem cogumelos.

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Flexibilidade em tempos de pandemia

Há um ano, no dia 1 de Junho de 2019, dei uma palestra na Translatelisbon sobre como encontrar o equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional quando se é freelancer e se trabalha em casa. Entre outras coisas, falei sobre a necessidade de, quando tal é possível, criar uma separação física entre a área de trabalho e a área de lazer ou familiar, e a primeira de oito sugestões que dei para encontrar equilíbrio foi definir um horário de trabalho. Reforcei que não era regra de ouro e que o que era bom para mim podia não ser bom para outra pessoa, mas expliquei que uma das vantagens de ter um horário definido quando não se tem horário é conseguir, também, definir um horário para o lazer e não sentir que estamos sempre a trabalhar (ou, por outro lado, que estamos sempre a procrastinar).

Dez meses depois da minha apresentação (que correu muito melhor do que pensava e encheu a sala com as pessoas certas), chega uma pandemia que me dá uma estalada em cada face e me faz engolir cada palavra proferida naquela manhã quente de Junho. Fomos todos remetidos para o teletrabalho, e se pensam que quem já trabalhava em casa não sentiu diferença, estão muito enganados. É que uma coisa é trabalhar em casa com a casa vazia (crianças na escola, parceiro no trabalho dele), com horários estipulados e aquela rotina com que sabemos que podemos contar na hora de aceitar ou recusar mais trabalho. Outra coisa completamente diferente é trabalhar em casa com TODA a gente em casa; e como se uma casa cheia não bastasse, essas pessoas que passaram a estar em casa contigo também têm de trabalhar e ter aulas e isso, muito provavelmente, ocorre no mesmo espaço do que tu (ou então, ocupam/ocupas a mesa das refeições, abalando os alicerces do ponto três da minha apresentação sobre a separação física entre o espaço de trabalho e o espaço pessoal).

Não vale a pena dizer que tem sido uma luta. Todos nós sentimos ou ainda andamos a sentir na pele as dificuldades inerentes ao teletrabalho e à telescola e a uma vivência 24/7 em contexto de confinamento. Sou apenas mais uma pessoa a queixar-me. E, como muita gente, também eu tive de fazer ajustes e concessões. Ser flexível foi crucial para isso. Felizmente, o meu trabalho permite-me toda a flexibilidade: trabalho com prazos, não com horários; logo, é pouco importante se sigo um determinado horário desde que consiga cumprir os prazos.

Ora, isto é um pau de dois bicos. Se, por um lado, tive a flexibilidade de poder trabalhar em qualquer horário, por outro lado, deixei de ter horário para trabalhar. Rapidamente comecei a sentir que o trabalho preenchia todos os meus bocadinhos livres. Rapidamente me comecei a sentir uma fraude: eu, que tanto defendera a necessidade de nós, tradutores e demais freelancers, nos precavermos contra possíveis abusos por parte de clientes menos atenciosos, educando os clientes para o facto de precisarmos tanto de fins de semana e tempos livres como eles, passei, de um momento para o outro, a entregar trabalhos a horas loucas, a responder a e-mails ao sábado à tarde, a correr para o computador sempre que algum aparelho ficava livre, a consultar o e-mail no telemóvel durante o almoço. Deixei de ter fins de semana ou feriados; os dias passarem a ser todos iguais, com a única diferença de não receber e-mails ao domingo.

Três meses volvidos, já todos nos habituámos mais ou menos a isto e nos ajustámos aos novos horários, mas eu continuo a sentir muita falta de ter um horário definido (e de trabalhar na santa paz do senhor, confesso). Por outro lado, também admito que é bastante tranquilizador ter uma profissão que me permite acordar às sete da manhã enquanto todos dormem e despachar o mais urgente para depois poder passar o resto da manhã na praia com as miúdas; ou pegar no portátil e partir rumo a terras algarvias para mudar de ares e fingir que este ano até vamos poder fazer férias. Não estou de férias, claro. Mas trabalhar na varanda de chinelo no pé dá uma enorme sensação de leveza e, de repente, não me sinto tanto aquela fraude.

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Sobrevivência das espécies

Faz este mês um ano que aluguei este escritório. Já tive a secretária em vários sítios, já por cá passou uma estagiária, já tive a companhia temporária do Tiago e vou tendo as minhas filhas em dias de greve. Mas na maior parte dos dias, estou sozinha, que é como gosto de trabalhar.

Sendo o meu o escritório mais pequeno do meio, sem janelas directamente para a rua, a luz natural que entra acaba por depender da luz dos restantes escritórios. Da parte da manhã, a luz entra pelas traseiras, da parte da tarde, vem do lado da frente. Até agora, tinha tido a sorte de um dos escritórios estar vago há muito tempo e, por isso, poder usufruir da luz sem obstáculos e com toda a privacidade. Só que quando cá cheguei esta segunda-feira, e sem pré-aviso, tinha toda a privacidade do mundo, mas nem um único rasgo de luz natural. Os novos ocupantes do escritório da frente lembraram-se de tapar as janelas interiores que dão para o meu escritório com estores pretos opacos. Parecia que estava a trabalhar dentro de um caixão. Bastou uma manhã para perceber que assim não ia longe.

Estava já a ponderar começar à procura de outro escritório, quando caí em mim. Espera lá, tu já cá estás há um ano. Quem chega tem de respeitar quem já cá está. Tem de haver outra solução que não passe por seres tu a sair. Pus a minha cara mais simpática e fui falar com eles. Tive o cuidado, contudo, de não ser simpática demais, mas sim assertiva, que é algo que ainda estou a aprender a ser. Apresentei-me, dei-lhes as boas-vindas e perguntei se era mesmo necessário terem aqueles estores sempre para baixo. Percebi que era uma questão de salvaguardar a privacidade dos comerciais. Expliquei que, apesar de entender o ponto de vista, assim retiravam-me toda a luz, o que me retirava também um pouco da alegria de viver – esta parte guardei para mim. Talvez pudéssemos arranjar um compromisso que agradasse a todos? Eles ficaram de arranjar uns grampos para segurar os estores das janelas do meio e eu, durante a hora de almoço, tratei de mudar a disposição da minha secretária longe de olhares alheios (os meus e os deles).

O resultado foi muito melhor do que pensava. Não só fiquei com uma secretária muito maior (juntei as duas que cá tinha), como me mudei para a zona, agora, com mais luz. Os senhores novos cumpriram o prometido e no dia seguinte levantaram os estores das janelas do meio. A minha mini copa está agora mais refundida (já não é a primeira coisa que se vê), tenho um espaço para atender os raros clientes que cá vêm e um espaço ao meu lado para a Inês ficar a “trabalhar” ao lado da mãe, como tanto gosta. No fim, aquilo que me pareceu, de princípio, uma total desconsideração, acabou por me ajudar a ter um espaço mais funcional e agradável à vista. No fundo, isto só aconteceu porque eu vi a solução em vez de só ver o problema. Nem sempre consigo. Às vezes, é só uma questão de não ficar sem ar no meio dos problemas. Basicamente, trata-se de ir sobrevivendo .

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