Desejo

Parece que ontem houve estrelas cadentes. Não sabemos, porque não as vimos, mas tentámos. À janela, perguntei-lhes que desejos tinham preparado para pedir assim que avistassem uma. A Alice disse que ia pedir às estrelas para voltar à escola antiga. Eu disse que o meu desejo era que ela fosse feliz na escola nova.

As lágrimas caíram-lhe sem pré-aviso. “Mas eu estou feliz na escola nova” , respondeu, aos soluços. “Só que tenho muitas saudades da minha escola antiga.”

Ela já percebeu isso. Já todos percebemos isso. As saudades que sente são só mesmo isso, saudades, e não o reflexo de qualquer mal-estar na escola nova. Prova disso são as novas amigas que a vêm buscar à porta, quando ela se agarra às minhas pernas. “Mamã, fica.”

Não tem sido fácil. Sobretudo depois de uma fantástica primeira semana na escola nova que em nada deixava adivinhar o que aí vinha. Mas vai passar. É o que todos nos dizem, é o que sabemos sem explicar bem porquê. Teria dado jeito uma estrela cadente para lhe pedir que passasse só um bocadinho mais depressa. Mas o tempo tem o seu tempo e, pronto, como nada podemos fazer para o apressar, também está bem assim.

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Se era para isto, mais valia ficares pelos post-its

Caderno que o Tiago me trouxe do Ártico.

Não sei porque escrevo, se é que se pode chamar escrever ao que faço. Já houve uma altura em que a escrita era uma parte indissociável dos meus dias; assim como comer, ou dormir, eu tinha necessidade de escrever. Enchia cadernos, uns atrás dos outros, com a descrição dos meus dias, pensamentos, contos e estórias que nunca cheguei a acabar. Encontrei-os no outro dia, em casa dos meus pais, quando procurava outra coisa qualquer. É sempre às cegas, quando menos esperamos, que encontramos as coisas que perdemos e as que julgávamos não precisar de encontrar. Sentada em cima da cama que já foi minha, reli alguns contos na diagonal, à pressa, com medo de ser surpreendida por uma das minhas filhas que viesse inquirir por que razão demorava a mãe e tivesse de lhes explicar, e, no pior cenário, ler (deus me acuda!), o que tanto a mãe escrevia quando era mais nova. Outros, incluindo os cadernos-diários, que me pareceram dignos de leitura atenta, levei-os comigo para casa. Foi inevitável não revirar os olhos perante a inexperiência e infantilidade em alguns rascunhos. Outros não estarão maus, mas é gritante a influência de autores que estaria a ler no momento. Tive sempre alguma tendência para absorver os modos dos outros, como se neles procurasse a minha voz, como se não pudesse ser eu mais do que uma amálgama daquilo que há nos outros.

Há pouco tempo, e não pensem que exagero quando me refiro ao curto espaço temporal que separa estes dois acontecimentos, comecei a sentir uma grande vontade de escrever, de me rodear de cadernos sobre tudo e mais alguma coisa como fazia quando vivia sozinha, quando os meus dias ainda tinham espaços em branco que podiam ser preenchidos com exercícios criativos dos mais variados graus de futilidade. Em contrapartida, hoje em dia, que já não vivo sozinha, todos os minutos contam – e são contados e preenchidos com tarefas úteis e necessárias para garantir o bom desempenho nas diversas áreas em que me movo. Em relação directa com isto, a escrita é, claro está, relegada para último plano. A última entrada do meu caderno-diário data de julho e quando não me quero esquecer de alguma citação que li num livro, em vez de a anotar, tiro uma foto com o telemóvel, acreditando que não vai ficar esquecida no meio de dezenas de fotos de gatos, comida e crianças. O meu blog, que não sei por quem é lido, pouco alento me dá. Há uns meses percebi que o que me dava mais jeito (e sentido) era enchê-lo com imagens e frases curtas para tentar mater um fio condutor sem perder muito do meu precioso tempo. Na minha cabeça, continuam a rodar sempre as mesmas histórias, mas como nunca lhes encontro um fim, também não lhes dou forma no papel. E assim vão passando os dias, sem pouco ou nada escrever.

Posto isso, não sei porque me inscrevi num curto de escrita de romance com um dos meus autores portugueses preferidos, não sei o que vou dizer na descrição de apresentação (Olá, eu sou a M. e enganei-me na sala?), nem muito menos sei o que raio vou eu escrever, ou – talvez mais pertinente – como vou eu arranjar tempo para escrever. Só sei que vou, porque já paguei e não sou pessoa para me acobardar ao último minuto. Eu saltei para o mar para ver o tubarão-baleia, caramba. Pior do que isso não deve ser.

Perante tudo o que não sei que vou dizer ou escrever, há algumas certezas que tenho. Como por exemplo:

Coisas que sei que não vou dizer:

– Ups, enganei-me na sala…

– Não sei bem como vim aqui parar…

– “Isto não está lá muito bom” (antes de ler seja o que for que escrever – só se me obrigarem, claro está).

– Gosto tanto dos seus livros, dá-me um autógrafo?

Coisas que sei que vou dizer:

– Olá, eu sou a M… Er… Não, está certo. O nome está certo, não falta nenhum “c”.

Porque há histórias cujo início já foi escrito há muito tempo.

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Biscate

Ontem, 30 de Setembro, foi o Dia Internacional da Tradução. Convidaram-me para, juntamente com duas colegas, ir representar a APTRAD e falar sobre a profissão de tradutor a três turmas de 3.º e 4.º anos. Estruturei a “aula” como melhor me pareceu, mesmo que à última hora decidisse mudar por completo a minha parte. Ainda assim, correu muito bem. Surpreende-me sempre este meu à vontade perante uma audiência, quando sempre me julguei uma introvertida incorrigível. No fim da nossa aula, de saída para um almoço entre colegas ou, como está na moda dizer, sessão de networking, fomos interpeladas pelo professor de inglês que queria saber como podia um amador entrar no mundo da tradução, cito, para fazer uns trabalhinhos à noite. Três pares de olhos postos nele, indecisos sobre se o mandar à fava ou responder da forma o mais condescendente correcta possível.

Continuarão sempre a espantar-me estas pessoas que vêem a tradução como um biscate, como uma coisa que se faz nas horas vagas para ganhar uns trocos, para a qual qualquer pessoa com conhecimentos de línguas está apta, sem precisar de tirar qualquer tipo de especialização.

Assim como continuarão sempre a espantar-me os clientes que pedem desconto de acordo com o volume de palavras, como se eu pudesse pedir ao Sr. Manel do talho um desconto proporcional ao número de bifes comprados.

E que sentido fazem os testes de tradução? Acaso pedimos uma consulta de teste quando vamos a um médico pela primeira vez?

Na mesma linha de reflexão, porque não instaurar o Dia do Tradutor como um dia de networking, lazer e reflexão? Só para tradutores, claro. Amador não entra.

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