Traduzir às cores

Tenho seguido, com algum fascínio, a polémica em torno da tradução da obra de Amanda Gorman para outras línguas. Para quem não sabe, Amanda Gorman é uma ativista estado-unidense, negra, que causou sensação na tomada de posse de Joe Biden ao recitar o poema The Hill We Climb. Pouco depois, toda a gente falava dela, toda a gente queria traduzir os seus poemas. Os problemas começaram aqui. Não com a tradução em si, mas com a escolha dos tradutores (no rescaldo da tomada de posse, o poema foi traduzido para português por um homem branco, mas na altura ninguém pareceu importar-se com isso).

Na Holanda, a editora que comprou os direitos da tradução escolheu Marieke Lucas Rijneveld, ela própria escritora, que se assume como não-binária (não sei se isto foi relevante para a escolha, mas é referido em todas as peças que leio, talvez por ser um elemento de diferença que a faz ter mais capacidade de perceber a mensagem de Gorman? –  pensamento solto), tendo recebido o aval da própria Amanda Gorman e da sua equipa. Até aqui tudo bem. O pior foi quando se levantaram vozes críticas que alegaram que o tal poema só poderia ser traduzido por “mulher, jovem, ativista e de preferência negra”.

A tradutora neerlandesa acabaria por desistir, pressionada por todos os lados. A onda alastraria para Espanha, onde Victor Obiols viria a ser afastado como tradutor eleito para o catalão por “não apresentar o perfil adequado”. Em Portugal, parece que a tradução pelo homem branco também não vingou, mas não houve grande celeuma em torno disso, pelo menos, que eu desse conta. Os editores, certamente atentos a este fenómeno, fizeram recair a sua escolha sobre Raquel Lima, uma poeta e performer negra, a quem caberá a tradução da obra integral de Gorman. O ipsílon de hoje faz capa com este tema e pergunta A Literatura tem cor? A tradução tem cor? A identidade importa?; é extenso, mas vale bem a pena ler.

Curiosamente, nunca me tinha questionado sobre isto, se a tradução tem cor ou identidade, até ter lido Rapariga Mulher Outra, de Bernardine Evaristo – que amei -, traduzido pelo experiente Miguel Romeira. Não consegui encontrar uma fotografia dele, mas creio não estar errada por depreender que é homem (duh) e branco. E o livro de Evaristo, além de ter sido escrito por uma mulher negra, é sobre mulheres negras, lésbicas, não-binárias, uma ou outra heterossexual, com um multilinguismo que deve ter sido um autêntico quebra-cabeças para o tradutor. Lembro-me de ter ficado meio chocada por ter sido um homem a traduzir um livro sobre mulheres (homossexuais e pessoas não-binárias), mas ao longo da tradução fui percebendo que ele até estava a dar bastante bem conta do recado, por isso não pensei mais sobre isso até que… chegamos à parte da personagem não-binária e notamos algumas incongruências. Atenção: eu não faria melhor! E acho que a tradução está óptima, muito bem adaptada e contemporânea, muito “na pele do outro”. Mas não posso deixar de concordar com esta crítica à tradução da personagem não-binária, cuja parte que nos importa transcrevo:

É evidente que os pronomes they e them em inglês permitem uma ausência de referência ao género que a língua portuguesa ainda não conseguiu. Temos vindo a tentar, com recurso a palavras como elxs, todes e outr_s, mas ainda não se definiu um formato consensual. Qualquer um destes teria sido válido para traduzir they e them mas o tradutor optou por elu, tanto quanto sei mais utilizado no Brasil. Tudo bem. O meu problema – e é aqui que começo a levar as mãos à cabeça – é quando a tradução se parece esquecer desta sua opção e traduz, literalmente, they para eles, no plural, referindo-se a uma só pessoa, Morgan. “Foi a primeira vez que eles falou em público” e “ali estava eles a sair-se espetacularmente” são dois exemplos do erro, não só de tradução mas de português que, infelizmente, aconteceu muitas mais vezes.

E eis que isto coloca imensas questões. Será que, agora, homens só devem traduzir homens, mulheres só devem traduzir mulheres, brancos, brancos, negros, negros, heterossexuais não podem traduzir homossexuais, e assim por diante? Terei eu, mulher privilegiada nascida no século XX, ter sido a escolha certa para traduzir uma coletânea de contos sexistas dos Irmãos Grimm? Será que, agora, mais do que as competências linguísticas, tradutórias, literárias, temos também de incluir no currículo a nossa cor, orientação sexual, nível de ativismo, interesses? E porque não pode um negro traduzir um branco? Só porque falta diversidade no mundo da tradução ou porque “não encaixaria no perfil”?

Não sei bem o que pensar sobre isto, confesso. Durante muitos anos, eu dizia que não via cor; a cor não importa, eu vejo a pessoa. Mas não é verdade, pois não? Isso é a história da carochinha que a sociedade branca nos impingiu. A cor interessa, sim, porque, quer queiramos quer não, somos diferentes, expressamo-nos de maneira diferente, temos uma história diferente que nos moldou e interpretamos as coisas de maneira diferente; um branco vê o mundo de maneira diferente de um negro, assim como um heterossexual vê o mundo de maneira diferente de uma pessoa não-binária. E, apesar de eu não saber quantos tradutores negros, homossexuais ou não-binários existem, suspeito de uma falta de diversidade no setor da tradução, assim como se verifica noutros campos. No entanto, não creio que a solução passe por compartimentar a literatura desta forma. Como diz Margarida Vale de Gato, na sua crónica Raça de Tradutores,continuo a achar que é boa ideia vestir a pele do outro, e péssima traçar linhas em que negros sejam melhor traduzidos por negros, mulheres por mulheres, e muito menos brancos por brancos. Gostaria, ao invés, que muitos brancos fossem traduzidos às cores para que essa amplificação/atualização de sentidos da tradução possa também servir para desconstruir, questionar, apropriar ou descartar.”

Posts relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *