Retificações

Por causa da publicação de ontem, sonhei com alguns dos tradutores mais conhecidos da praça. Estava também lá a Tânia Ganho e o falecido José Vieira de Lima. Estávamos todos num barco, o que deve querer dizer qualquer coisa, porque eu odeio andar de barco, mas poderá ter simplesmente que ver com a conversa que tivemos ontem à mesa. (A Inês perguntou-me o que compraria eu com 10 milhões, sendo que só receberia o dinheiro se fosse para comprar bens, ao que eu respondi que, entre outras coisas, comprava um barco.) Não sei se íamos para um retiro de tradutores ou algo do género, mas lembro-me de falarmos sobre a minha publicação de ontem, e quando acordei, além de pensar “a portada está a bater”, pensei que tinha de vir aqui retificar umas coisas, a que o meu subconsciente tão duramente me chamou à razão durante a noite.

O facto de Miguel Romeira não ter apresentado uma tradução incólume da personagem não-binária não é culpa de ele ser homem (branco ou não). Eu própria não saberia como traduzir they e them neste contexto. Está certo que já uma vez contactei a ILGA para pedir ajuda relativamente ao terceiro género, pois queria usar o termo certo numa tradução. Estávamos em 2019 e eu nunca ouvira falar em pessoa não-binária. Pois é. Mas o Miguel Romeira também deve ter feito a sua pesquisa exaustiva. E acredito que tenha dado com este site, onde uma das opções dadas para a neutralidade da linguagem é, precisamente, elu. É possível que, tendo o tradutor começado por usar eles e ter, posteriormente, optado por elu, lhe tenham escapado aqueles eles ali no meio ao fazer a substituição. São coisas que acontecem e que podem – devem – ser detetadas na revisão. O resto da tradução está impecável; adorava conseguir traduzir assim.

Está a defesa do tradutor feita.

Agora, falta a defesa da (ideia de) tradução. E, na publicação de ontem, faltou-me colocar outra pergunta: Se se pressupõe que só uma mulher negra, jovem e ativista conseguirá veicular a mensagem de Amanda Gorman, significa isso que essa mensagem só poderá ser compreendida por mulheres jovens, negras e ativistas? É um pau de dois gumes, eu sei, e alguns dirão “tudo depende do contexto”. Mas eu não gostaria que me fosse vedada a possibilidade de traduzir quem quer que fosse, mesmo apresentando qualificações bastantes para tal, devido ao meu género, cor, classe social ou nível de ativismo. Que não tenha experiência, é uma coisa, que não tenha qualificações, idem; mas não caiamos no risco de começarmos a engavetar conceitos.

Djaimilia Pereira de Almeida diz isso muito bem:

A ideia de que autores negros não devem ser traduzidos por brancos implica uma posição recíproca inaceitável: a de que, como mulher negra, não me é reconhecida a capacidade (mais ainda, o direito) de traduzir, por exemplo, Rousseau ou Flaubert. Essa é uma capacidade literária. O género, a cor, o meu contexto familiar não são o que me qualifica para traduzir Toni Morrison, nem o que me desqualifica para traduzir Pushkin. Não me sinto numa posição intrinsecamente privilegiada para traduzir livros de autoras negras e, quando se trata de escolher tradutores para os meus livros, basear-me nesse critério seria uma ingenuidade sem cabimento e um paradoxo. Imaginar que só uma mulher negra pode traduzir o que escrevo sugere que só uma mulher negra poderá compreender essa tradução e, portanto, que só posso ser entendida por leitoras negras. Considero tão difícil fazer-me entender a uma tradutora negra como a um tradutor branco. A tradução representa uma esperança na possibilidade de ser compreendida por aqueles que não se assemelham comigo. A tradução constitui a semelhança. Aproxima-nos. Sou feita do que li, graças a muitos tradutores: o seu género e cor de pele são indiferentes. O pronunciamento em questão preconiza na verdade uma hostilidade à literatura: é contra a possibilidade de a imaginação criativa romper as inibições, o ponto de vista e a sensibilidade limitada do ‘eu’.”

E, pronto, acho que esta noite vai ser sem sonhos.

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