Craftivismo

Este fim-de-semana conheci a Ana. Já a conhecia de muitas mensagens trocadas virtualmente devido a alguns gostos e interesses comuns. Até já tínhamos feito a promessa de nos encontrarmos pessoalmente “um dia destes”, pois se até moramos perto…


A Ana é uma alma apaixonada e inquieta. Por ter em si a vontade de mudar o mundo, mas lhe faltar a ambição de o fazer activamente em público, e por ter talento e gosto pelos crafts, a Ana é uma craftivista. Não é ela que assim se auto-intitula (ou se calhar também), sou eu que o digo. Desconhecendo o termo até há bem pouco tempo, sinto muita curiosidade sobre esta forma de fazer ativismo: lenta e pacifista, para introvertidos, através do nosso tempo e jeito para as manualidades. Graças à Ana, descobri outras mulheres que fazem este tipo de activismo, seja para chamar a atenção de grandes corporações e se manifestarem contra as grandes injustiças sociais, seja apenas como meio de apelar à humanidade. Desconfio do impacto que a maior parte destas acções terá, se pouco, se nenhum. Mas numa era em que se acumulam as notícias pouco animadoras sobre o estado da nossa natureza e as pessoas à minha volta continuam, como há vinte anos, tão ou ainda menos empenhadas em mudar o agora para garantir o amanhã dos seus filhos (mudanças de paradigma e hábitos com vista a um futuro mais sustentável, leia-se), eu acho que tudo conta. E é assim que está a nascer o Movimento Somos Natureza. Ainda em estado embrionário, pretende-se levar mais pessoas a assinar a petição pelo reconhecimento dos Direitos da Natureza através de workshops e iniciativas locais – e não através da angariação de assinaturas na rua, porque se trata de uma cambada de introvertidos, claro está! No primeiro workshop, a Ana vai ensinar a bordar um painel deste tipo, fomentando-se a reciclagem de materiais. Utilizar o bordado não tanto como um fim, mas como um meio. A Ana até já esteve a ensinar-me a bordar e eu descobri um admirável novo mundo. Novidades para breve. Entretanto podem ir assinando a petição.

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Assalto do alter ego

Andava uma pilha de nervos. Sonhei várias vezes que chegava atrasada à minha própria apresentação. De cada vez que treinava, a minha voz embargava ou faltavam-me as palavras. Não se pode dizer que tenha pensado em desistir, mas confesso que não estava muito confiante.

Considero-me uma pessoa introvertida. Odeio falar em público ou ser o centro das atenções. Até falar ao telefone é coisa que evito. Lembro-me dos meus nervos quando, na faculdade, tinha de apresentar trabalhos orais. Não sei se alguma vez me senti completamente à vontade. Além disso, nunca achei que isto fosse uma coisa que melhora com a idade. Uma vez introvertida, sempre introvertida.

Curiosamente, quando comecei a minha apresentação no âmbito de uma conferência de tradução na minha antiga faculdade, no sábado passado, não estava assim tão nervosa. Só um pouco, talvez o necessário para espevitar a adrenalina. Mais curiosamente ainda foi que, ao longo de 50 minutos, eu deixei de ser eu para passar a ser outra pessoa qualquer, desinibida e com capacidade para fazer piadas. Ainda me pergunto se fui assaltada por um alter ego ou algo do tipo espírito santo, porque a verdade é que não só correu bem, como me diverti imenso a falar e partilhar a minha experiência. O melhor de tudo foi olhar para a minha audiência e perceber que as pessoas não estavam a apanhar uma grande seca e, no fim, algumas virem ter comigo só para dizer que tinham gostado muito. Não foi a TED Talk do ano, mas foi bonito. Foi o meu momento. E, para a próxima, não vou duvidar tanto de mim (emoji coração).

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Nêsperas

Kika

A nossa gata Kika não vem a casa desde domingo. Da última vez que a vi, dirigia-se ao canavial do outro lado da rua com uma lagartixa na boca. Atrás dela ia outro gato, que não é dali, mas gosta de ir atazanar as nossas gatas. Não estavam, contudo, com ar de perseguição. Ela ia à frente com uma presa na boca e ele ia atrás dela, curioso. Coisas de gatos.

Quando, no outro dia, ela não apareceu para comer ou dormir, achámos estranho, mas não nos preocupámos muito. Afinal, os gatos são seres livres. Precisam de actividade, de caçar, de dormir ao sol e eu deixo as minhas fazerem tudo isso, não as prendo, porque posso. Vivo numa vivenda com espaço exterior e instalei uma portinhola para gatos na porta da cozinha. Elas entram e saem quando querem. Outros gatos também entram quando querem. Já sair é quando nós mandamos.
Ao segundo dia, comecei à procura dela. Primeiro a pé, pela zona, chamando-a naquele tom de quem anuncia paparoca (porque ela respondia sempre), depois de carro, atenta às bermas da estrada, com o coração em sobressalto sempre que avistava uma massa indistinta na margem. À tarde, fomos afixar anúncios. Gata procura-se. Gatinha perdida. Quem a vir, por favor avise. E fotos.
Decidi aventurar-me no canavial. Eu já estou muito melhor com o meu medo dos gafanhotos. Já os tolero mais, a horta ajuda-me nisso. Vejo-os a saltar à minha frente e, se não forem daqueles grandes e castanhos, penso sempre que eles têm mais medo de mim do que eu deles. Ou o truque será não olhar para baixo. Porque eles estão lá, mas eu se não os vir, está tudo mais ou menos bem.
A Olívia, a gata mais nova, veio atrás de mim, a fazer corridas à minha frente, possivelmente feliz por eu estar no parque infantil dela. Num recanto do canavial, escondida atrás do quintal do vizinho, uma grande nespereira, cuja existência desconhecia. Aproximei-me. Reparei que havia algumas nêsperas, mas quase todas nos ramos superiores. Ainda consegui apanhar umas quantas, que guardei no regaço da camisola e segui caminho por entre as canas, com as nêsperas no colo e a Olívia no meu encalço.

Quando regressei a casa, não trazia a gata, mas trazia cinco nêsperas. Serão boas?, perguntou-me ele. Se forem, tens de lá ir com um escadote, respondi eu. Se forem boas, até lá vou com um escadote. Partilhámos uma. Era boa. Doce. Maravilhosa.

Se virem a Kika, digam-lhe que estamos à espera dela. E que traga um escadote. Temos nêsperas docinhas para apanhar.

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Bilhete

Quando vivia em Berlim, escrevia muito. Tinha um blogue, muito mais activo do que o actual, mas também escrevia em cadernos, os meus Cadernos de Berlim. Além disso, escrevia histórias e contos, praticamente todos inacabados. Quando regressei a Portugal, continuei a escrever, em blogues e cadernos, mas a inspiração e vontade foram-se desvanecendo com a maternidade. Cheguei a pensar que era Lisboa que não me estimulava ou que para escrever precisava de sofrer ou de me sentir sozinha.

Ontem, o Nick Cave, no fabuloso conversa-concerto que deu em Berlim, e a que eu assisti embevecida na quinta fila, falou disso, em resposta a uma pergunta sobre se para o processo criativo é necessário sofrer ou ter sofrido. “That’s insane”, respondeu, com aquele ar de quem nunca ouvira pergunta mais parva.

Fiquei a pensar nisso. Desde há alguns meses que recuperei a vontade de escrever, curiosamente não neste blogue, vontade esta que nada tem que ver com o meu nível de sofrimento ou solidão. Simplesmente, um dia, a vontade voltou a estar lá. Talvez seja mesmo assim tão simples.

Aproveito uma manhã chuvosa em Berlim, a minha última manhã da minha curta estadia, para ressuscitar este blogue dos mortos. Sem promessas, nem compromissos. Apenas para dizer que ainda aqui estou e que talvez volte. Berlim inspira-me, traz de volta aquela nostalgia boa para a escrita, faz-me pensar nos “e ses” da vida, faz-me estar desperta para as coisas pequenas. Mas, ei, eu já não vivo em Berlim. E não sei se a minha vida boa em Sesimbra é suficientemente boa para escrever sobre ela. É claro que se o Nick Cave lesse isto agora, dir-me-ia certamente, “Girl, that’s insane!”. E eu piscar-lhe-ia o olho e diria: “I know”.

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Da bondade

Ela abordou-me no parque de estacionamento. A minha primeira reacção foi a reacção de qualquer mulher que é abordada num parque de estacionamento: desconfiar, perscrutar cada canto à procura do cúmplice que me vai saltar em cima e roubar-me o carro, ou pior, agarrar bem na mala, lembrar-me já de uma resposta antes de ouvir a pergunta que tem para me fazer, preparar-me para desatar a correr.

– Ando a pedir para comprar uma lata de leite para o meu bebé.

Ah, esta é fácil. Vou oferecer-me para lhe comprar a lata. Tenho a certeza de que vai dizer que não, porque ela só quer o dinheiro.

-Quer comprar uma lata de leite? Então, venha daí que eu compro-lha.
-A sério? – O seu rosto iluminou-se – Oh, obrigada, muito obrigada.

Raios. Eu pensava que ela não queria o leite.

Enquanto subíamos as escadas rolantes, ela ia-me contando como era difícil encontrar farmácias que tivessem aquele leite para o bebé que sofria de alergias e precisava de leite adaptado. Eu ia fazendo contas à vida, leite adaptado não é barato, ao mesmo tempo que ia mentalmente desfiando um rol de possíveis fraudes de que estaria a ser vítima:
1) A trapaceira ter-me-ia distraído junto ao carro, fazendo-me esquecer de trancar o mesmo e agora já alguém me tinha roubado o aquecedor que eu comprara há meia hora;
2) A trapaceira estaria a distrair-me com a conversa para alguém me arrancar a mala ou meter-me a mão à carteira sem eu dar por nada;
3) Qualquer outra manobra de diversão não prevista em 1) e 2).

Entrámos na farmácia e ela dirigiu-se imediatamente à secção de puericultura. Não havia o leite em questão, ter-se-ia de encomendar, à tarde já lá estaria. Mas ela não quis esperar. Pensei Já te livraste de gastar uma pipa de massa e estava pronta para me despedir quando ela me explica, com uma lágrima tímida a espreitar no canto do olho, que não podia esperar até à tarde, porque não era dali, era de Campolide e tinha vindo até Almada para se encontrar com uma mulher que lhe ia dar roupa para os três filhos, mas que não tinha aparecido. Agora não tinha roupa, nem dinheiro para voltar para casa, nem leite para o bebé, a quem dava mama, mas a mama não chegava, ela chorava muito e ainda por cima tinha alergias. Insistiu em mostrar-me as fotos dos filhos e eu vi-a numa outra vida, com base na cara, sem espinhas nem olheiras, com cabelo liso e sorriso na cara, ao lado de três miúdos sorridentes. Era um antes e um depois, e o depois era agora e estava à minha frente a dizer que tinha muita vergonha de pedir. Ela tinha um ligeiro sotaque, mas falava sem erros, como se cá estivesse há muito tempo, talvez vinda da Roménia, ou da Síria, mas estou apenas a especular. Talvez devesse ter-lhe perguntado o nome, a proveniência, mas debatia-me interiormente com a desconfiança e a compaixão. E se fosse eu? Se um dia a vida mudar e for eu a pedir dinheiro para comprar comida para as minhas filhas, à porta de um supermercado? Se o nosso país entrasse em guerra e a minha família tivesse de fugir? Se fosse eu a ser constantemente repudiada por pessoas que me podiam ajudar, mas que não queriam por pura desconfiança?
Quando é que deixámos de acreditar no Outro? Quando é que passámos a pensar só em nós, na depilação a laser que vamos fazer a seguir, uma prioridade tão de primeiro mundo?
Fui ao multibanco, levantei 20 euros e dei-lhos, para o leite ou para voltar para casa.

Dali fui almoçar, com uma bola no estômago, a recriminar-me por não lhe ter dado mais dinheiro, porque com 20 euros não compra uma lata de leite adaptado e um bilhete de autocarro. Passei o almoço todo a debater-me com fiz pouco, fiz o suficiente, procura aí no Google casos recentes de burla que envolvam leite adaptado…

De volta ao parque de estacionamento, voltei a encontrá-la. Abordava outras mulheres. Na mão, segurava uma embalagem de fraldas. Pensei que a comprara com o meu dinheiro e tranquilizei-me um pouco. Talvez fosse mesmo verdade, talvez precisasse mesmo do dinheiro para o filho. Dirigi-me ao meu carro, o aquecedor ainda no banco de trás. Ela viu-me e veio ter comigo. Queria mostrar-me o saco de fraldas que outra senhora lhe tinha comprado e agradecer-me outra vez por ter aberto a excepção; a outra senhora ajudara-a, porque eu a ajudara e agora de certeza que ia encontrar mais alguém para lhe dar o dinheiro para o autocarro. Eu tinha sido amável e ela estava-me muito agradecida. Dei-lhe um abraço e desejei-lhe boa sorte. Não lhe perguntei o nome, nem de onde era, mas vim todo o caminho de volta a pensar naquilo e na reacção automática que as pessoas (eu) têm de nem quererem ouvir quando alguém lhes pede ajuda. Assumimos (assumo) logo que nos querem enganar, mentir, assaltar, ou que o dinheiro terá a única finalidade de aplacar os vícios. Senti-me envergonhada, eu que não sei o que é a vergonha de ter de pedir dinheiro num parque de estacionamento.

Quando cheguei ao escritório, encontrei sem querer esta imagem. Não sabia que hoje é o Dia Mundial da Bondade, mas acho que agora já não me vou esquecer.

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