Dia do tradutor

Tive o melhor dia do tradutor de sempre. Já tinha participado em encontros informais, jantares organizados, fui inclusivamente a uma escola falar sobre a profissão de tradutor a uma turma do terceiro ano, mas este ano, sem eventos marcados, recebi, em pleno dia do tradutor, a proposta para traduzir o primeiro romance-mesmo-giro que já tive em mãos (daqueles que me agradam com leitora) e o elogio de um colega de profissão. Isto, parecendo que não, vale mais do que um cliente satisfeito.

Depois, à noite, assisti remotamente ao duelo entre uma tradutora humana (uma antiga professora de Literatura Alemã, cuja voz me fez voltar uns valentes anos ao passado) e um software de tradução automática. Achei as quase duas horas de sessão verdadeiramente interessantes, o que diz muito da forma como tenho passado os serões…

Seja como for, decidi que este mês iria escrever aqui todos os dias. Nem que seja só uma frase, uma palavra, a legenda de uma imagem. Não é bem uma promessa, antes uma espécie de resolução de ano novo. Lá para o dia 11 já me devo ter esquecido.

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Retificações

Por causa da publicação de ontem, sonhei com alguns dos tradutores mais conhecidos da praça. Estava também lá a Tânia Ganho e o falecido José Vieira de Lima. Estávamos todos num barco, o que deve querer dizer qualquer coisa, porque eu odeio andar de barco, mas poderá ter simplesmente que ver com a conversa que tivemos ontem à mesa. (A Inês perguntou-me o que compraria eu com 10 milhões, sendo que só receberia o dinheiro se fosse para comprar bens, ao que eu respondi que, entre outras coisas, comprava um barco.) Não sei se íamos para um retiro de tradutores ou algo do género, mas lembro-me de falarmos sobre a minha publicação de ontem, e quando acordei, além de pensar “a portada está a bater”, pensei que tinha de vir aqui retificar umas coisas, a que o meu subconsciente tão duramente me chamou à razão durante a noite.

O facto de Miguel Romeira não ter apresentado uma tradução incólume da personagem não-binária não é culpa de ele ser homem (branco ou não). Eu própria não saberia como traduzir they e them neste contexto. Está certo que já uma vez contactei a ILGA para pedir ajuda relativamente ao terceiro género, pois queria usar o termo certo numa tradução. Estávamos em 2019 e eu nunca ouvira falar em pessoa não-binária. Pois é. Mas o Miguel Romeira também deve ter feito a sua pesquisa exaustiva. E acredito que tenha dado com este site, onde uma das opções dadas para a neutralidade da linguagem é, precisamente, elu. É possível que, tendo o tradutor começado por usar eles e ter, posteriormente, optado por elu, lhe tenham escapado aqueles eles ali no meio ao fazer a substituição. São coisas que acontecem e que podem – devem – ser detetadas na revisão. O resto da tradução está impecável; adorava conseguir traduzir assim.

Está a defesa do tradutor feita.

Agora, falta a defesa da (ideia de) tradução. E, na publicação de ontem, faltou-me colocar outra pergunta: Se se pressupõe que só uma mulher negra, jovem e ativista conseguirá veicular a mensagem de Amanda Gorman, significa isso que essa mensagem só poderá ser compreendida por mulheres jovens, negras e ativistas? É um pau de dois gumes, eu sei, e alguns dirão “tudo depende do contexto”. Mas eu não gostaria que me fosse vedada a possibilidade de traduzir quem quer que fosse, mesmo apresentando qualificações bastantes para tal, devido ao meu género, cor, classe social ou nível de ativismo. Que não tenha experiência, é uma coisa, que não tenha qualificações, idem; mas não caiamos no risco de começarmos a engavetar conceitos.

Djaimilia Pereira de Almeida diz isso muito bem:

A ideia de que autores negros não devem ser traduzidos por brancos implica uma posição recíproca inaceitável: a de que, como mulher negra, não me é reconhecida a capacidade (mais ainda, o direito) de traduzir, por exemplo, Rousseau ou Flaubert. Essa é uma capacidade literária. O género, a cor, o meu contexto familiar não são o que me qualifica para traduzir Toni Morrison, nem o que me desqualifica para traduzir Pushkin. Não me sinto numa posição intrinsecamente privilegiada para traduzir livros de autoras negras e, quando se trata de escolher tradutores para os meus livros, basear-me nesse critério seria uma ingenuidade sem cabimento e um paradoxo. Imaginar que só uma mulher negra pode traduzir o que escrevo sugere que só uma mulher negra poderá compreender essa tradução e, portanto, que só posso ser entendida por leitoras negras. Considero tão difícil fazer-me entender a uma tradutora negra como a um tradutor branco. A tradução representa uma esperança na possibilidade de ser compreendida por aqueles que não se assemelham comigo. A tradução constitui a semelhança. Aproxima-nos. Sou feita do que li, graças a muitos tradutores: o seu género e cor de pele são indiferentes. O pronunciamento em questão preconiza na verdade uma hostilidade à literatura: é contra a possibilidade de a imaginação criativa romper as inibições, o ponto de vista e a sensibilidade limitada do ‘eu’.”

E, pronto, acho que esta noite vai ser sem sonhos.

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Traduzir às cores

Tenho seguido, com algum fascínio, a polémica em torno da tradução da obra de Amanda Gorman para outras línguas. Para quem não sabe, Amanda Gorman é uma ativista estado-unidense, negra, que causou sensação na tomada de posse de Joe Biden ao recitar o poema The Hill We Climb. Pouco depois, toda a gente falava dela, toda a gente queria traduzir os seus poemas. Os problemas começaram aqui. Não com a tradução em si, mas com a escolha dos tradutores (no rescaldo da tomada de posse, o poema foi traduzido para português por um homem branco, mas na altura ninguém pareceu importar-se com isso).

Na Holanda, a editora que comprou os direitos da tradução escolheu Marieke Lucas Rijneveld, ela própria escritora, que se assume como não-binária (não sei se isto foi relevante para a escolha, mas é referido em todas as peças que leio, talvez por ser um elemento de diferença que a faz ter mais capacidade de perceber a mensagem de Gorman? –  pensamento solto), tendo recebido o aval da própria Amanda Gorman e da sua equipa. Até aqui tudo bem. O pior foi quando se levantaram vozes críticas que alegaram que o tal poema só poderia ser traduzido por “mulher, jovem, ativista e de preferência negra”.

A tradutora neerlandesa acabaria por desistir, pressionada por todos os lados. A onda alastraria para Espanha, onde Victor Obiols viria a ser afastado como tradutor eleito para o catalão por “não apresentar o perfil adequado”. Em Portugal, parece que a tradução pelo homem branco também não vingou, mas não houve grande celeuma em torno disso, pelo menos, que eu desse conta. Os editores, certamente atentos a este fenómeno, fizeram recair a sua escolha sobre Raquel Lima, uma poeta e performer negra, a quem caberá a tradução da obra integral de Gorman. O ipsílon de hoje faz capa com este tema e pergunta A Literatura tem cor? A tradução tem cor? A identidade importa?; é extenso, mas vale bem a pena ler.

Curiosamente, nunca me tinha questionado sobre isto, se a tradução tem cor ou identidade, até ter lido Rapariga Mulher Outra, de Bernardine Evaristo – que amei -, traduzido pelo experiente Miguel Romeira. Não consegui encontrar uma fotografia dele, mas creio não estar errada por depreender que é homem (duh) e branco. E o livro de Evaristo, além de ter sido escrito por uma mulher negra, é sobre mulheres negras, lésbicas, não-binárias, uma ou outra heterossexual, com um multilinguismo que deve ter sido um autêntico quebra-cabeças para o tradutor. Lembro-me de ter ficado meio chocada por ter sido um homem a traduzir um livro sobre mulheres (homossexuais e pessoas não-binárias), mas ao longo da tradução fui percebendo que ele até estava a dar bastante bem conta do recado, por isso não pensei mais sobre isso até que… chegamos à parte da personagem não-binária e notamos algumas incongruências. Atenção: eu não faria melhor! E acho que a tradução está óptima, muito bem adaptada e contemporânea, muito “na pele do outro”. Mas não posso deixar de concordar com esta crítica à tradução da personagem não-binária, cuja parte que nos importa transcrevo:

É evidente que os pronomes they e them em inglês permitem uma ausência de referência ao género que a língua portuguesa ainda não conseguiu. Temos vindo a tentar, com recurso a palavras como elxs, todes e outr_s, mas ainda não se definiu um formato consensual. Qualquer um destes teria sido válido para traduzir they e them mas o tradutor optou por elu, tanto quanto sei mais utilizado no Brasil. Tudo bem. O meu problema – e é aqui que começo a levar as mãos à cabeça – é quando a tradução se parece esquecer desta sua opção e traduz, literalmente, they para eles, no plural, referindo-se a uma só pessoa, Morgan. “Foi a primeira vez que eles falou em público” e “ali estava eles a sair-se espetacularmente” são dois exemplos do erro, não só de tradução mas de português que, infelizmente, aconteceu muitas mais vezes.

E eis que isto coloca imensas questões. Será que, agora, homens só devem traduzir homens, mulheres só devem traduzir mulheres, brancos, brancos, negros, negros, heterossexuais não podem traduzir homossexuais, e assim por diante? Terei eu, mulher privilegiada nascida no século XX, ter sido a escolha certa para traduzir uma coletânea de contos sexistas dos Irmãos Grimm? Será que, agora, mais do que as competências linguísticas, tradutórias, literárias, temos também de incluir no currículo a nossa cor, orientação sexual, nível de ativismo, interesses? E porque não pode um negro traduzir um branco? Só porque falta diversidade no mundo da tradução ou porque “não encaixaria no perfil”?

Não sei bem o que pensar sobre isto, confesso. Durante muitos anos, eu dizia que não via cor; a cor não importa, eu vejo a pessoa. Mas não é verdade, pois não? Isso é a história da carochinha que a sociedade branca nos impingiu. A cor interessa, sim, porque, quer queiramos quer não, somos diferentes, expressamo-nos de maneira diferente, temos uma história diferente que nos moldou e interpretamos as coisas de maneira diferente; um branco vê o mundo de maneira diferente de um negro, assim como um heterossexual vê o mundo de maneira diferente de uma pessoa não-binária. E, apesar de eu não saber quantos tradutores negros, homossexuais ou não-binários existem, suspeito de uma falta de diversidade no setor da tradução, assim como se verifica noutros campos. No entanto, não creio que a solução passe por compartimentar a literatura desta forma. Como diz Margarida Vale de Gato, na sua crónica Raça de Tradutores,continuo a achar que é boa ideia vestir a pele do outro, e péssima traçar linhas em que negros sejam melhor traduzidos por negros, mulheres por mulheres, e muito menos brancos por brancos. Gostaria, ao invés, que muitos brancos fossem traduzidos às cores para que essa amplificação/atualização de sentidos da tradução possa também servir para desconstruir, questionar, apropriar ou descartar.”

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Flexibilidade em tempos de pandemia

Há um ano, no dia 1 de Junho de 2019, dei uma palestra na Translatelisbon sobre como encontrar o equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional quando se é freelancer e se trabalha em casa. Entre outras coisas, falei sobre a necessidade de, quando tal é possível, criar uma separação física entre a área de trabalho e a área de lazer ou familiar, e a primeira de oito sugestões que dei para encontrar equilíbrio foi definir um horário de trabalho. Reforcei que não era regra de ouro e que o que era bom para mim podia não ser bom para outra pessoa, mas expliquei que uma das vantagens de ter um horário definido quando não se tem horário é conseguir, também, definir um horário para o lazer e não sentir que estamos sempre a trabalhar (ou, por outro lado, que estamos sempre a procrastinar).

Dez meses depois da minha apresentação (que correu muito melhor do que pensava e encheu a sala com as pessoas certas), chega uma pandemia que me dá uma estalada em cada face e me faz engolir cada palavra proferida naquela manhã quente de Junho. Fomos todos remetidos para o teletrabalho, e se pensam que quem já trabalhava em casa não sentiu diferença, estão muito enganados. É que uma coisa é trabalhar em casa com a casa vazia (crianças na escola, parceiro no trabalho dele), com horários estipulados e aquela rotina com que sabemos que podemos contar na hora de aceitar ou recusar mais trabalho. Outra coisa completamente diferente é trabalhar em casa com TODA a gente em casa; e como se uma casa cheia não bastasse, essas pessoas que passaram a estar em casa contigo também têm de trabalhar e ter aulas e isso, muito provavelmente, ocorre no mesmo espaço do que tu (ou então, ocupam/ocupas a mesa das refeições, abalando os alicerces do ponto três da minha apresentação sobre a separação física entre o espaço de trabalho e o espaço pessoal).

Não vale a pena dizer que tem sido uma luta. Todos nós sentimos ou ainda andamos a sentir na pele as dificuldades inerentes ao teletrabalho e à telescola e a uma vivência 24/7 em contexto de confinamento. Sou apenas mais uma pessoa a queixar-me. E, como muita gente, também eu tive de fazer ajustes e concessões. Ser flexível foi crucial para isso. Felizmente, o meu trabalho permite-me toda a flexibilidade: trabalho com prazos, não com horários; logo, é pouco importante se sigo um determinado horário desde que consiga cumprir os prazos.

Ora, isto é um pau de dois bicos. Se, por um lado, tive a flexibilidade de poder trabalhar em qualquer horário, por outro lado, deixei de ter horário para trabalhar. Rapidamente comecei a sentir que o trabalho preenchia todos os meus bocadinhos livres. Rapidamente me comecei a sentir uma fraude: eu, que tanto defendera a necessidade de nós, tradutores e demais freelancers, nos precavermos contra possíveis abusos por parte de clientes menos atenciosos, educando os clientes para o facto de precisarmos tanto de fins de semana e tempos livres como eles, passei, de um momento para o outro, a entregar trabalhos a horas loucas, a responder a e-mails ao sábado à tarde, a correr para o computador sempre que algum aparelho ficava livre, a consultar o e-mail no telemóvel durante o almoço. Deixei de ter fins de semana ou feriados; os dias passarem a ser todos iguais, com a única diferença de não receber e-mails ao domingo.

Três meses volvidos, já todos nos habituámos mais ou menos a isto e nos ajustámos aos novos horários, mas eu continuo a sentir muita falta de ter um horário definido (e de trabalhar na santa paz do senhor, confesso). Por outro lado, também admito que é bastante tranquilizador ter uma profissão que me permite acordar às sete da manhã enquanto todos dormem e despachar o mais urgente para depois poder passar o resto da manhã na praia com as miúdas; ou pegar no portátil e partir rumo a terras algarvias para mudar de ares e fingir que este ano até vamos poder fazer férias. Não estou de férias, claro. Mas trabalhar na varanda de chinelo no pé dá uma enorme sensação de leveza e, de repente, não me sinto tanto aquela fraude.

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Biscate

Ontem, 30 de Setembro, foi o Dia Internacional da Tradução. Convidaram-me para, juntamente com duas colegas, ir representar a APTRAD e falar sobre a profissão de tradutor a três turmas de 3.º e 4.º anos. Estruturei a “aula” como melhor me pareceu, mesmo que à última hora decidisse mudar por completo a minha parte. Ainda assim, correu muito bem. Surpreende-me sempre este meu à vontade perante uma audiência, quando sempre me julguei uma introvertida incorrigível. No fim da nossa aula, de saída para um almoço entre colegas ou, como está na moda dizer, sessão de networking, fomos interpeladas pelo professor de inglês que queria saber como podia um amador entrar no mundo da tradução, cito, para fazer uns trabalhinhos à noite. Três pares de olhos postos nele, indecisos sobre se o mandar à fava ou responder da forma o mais condescendente correcta possível.

Continuarão sempre a espantar-me estas pessoas que vêem a tradução como um biscate, como uma coisa que se faz nas horas vagas para ganhar uns trocos, para a qual qualquer pessoa com conhecimentos de línguas está apta, sem precisar de tirar qualquer tipo de especialização.

Assim como continuarão sempre a espantar-me os clientes que pedem desconto de acordo com o volume de palavras, como se eu pudesse pedir ao Sr. Manel do talho um desconto proporcional ao número de bifes comprados.

E que sentido fazem os testes de tradução? Acaso pedimos uma consulta de teste quando vamos a um médico pela primeira vez?

Na mesma linha de reflexão, porque não instaurar o Dia do Tradutor como um dia de networking, lazer e reflexão? Só para tradutores, claro. Amador não entra.

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