Heinrich ou razões para celebrar

Sexta-feira. Ufa, que semana.

Fui ao dentista e descobriram-me duas cáries. A única altura da minha vida em que tenho cáries é depois de uma gravidez – oito semanas que continuam a fazer os seus estragos. Ainda assim, ando melhor; consegui, pela primeira vez, contar o que me aconteceu e como fui tratada no hospital sem que se me embargasse a voz, nem sentisse crescer em mim aquela tristeza disfarçada de raiva. Contei e a seguir fui à minha vida e só voltei a pensar nisso agora. É claro que tenho pensado o que vou fazer a 17 de maio, a data inicialmente prevista para o nascimento. Ficou-me a data na cabeça, o que querem, mesmo que, tendo-se dado a coisa, o bebé dificilmente nascesse nesse dia. Sinto-me a sofrer por antecipação, como se tivesse de fazer alguma coisa nesse dia, um ritual masoquista qualquer ou, simplesmente, tratar do assunto com duas garrafas de vinho. Esta última é a solução que mais me agrada, como já se percebeu pelas vezes que aqui falo de vinho. Tanto que voltei a beber todos os dias. Já não fazia isto desde as férias ou o primeiro confinamento. Mas a diferença entre o primeiro confinamento e agora é que, no primeiro, bebíamos para sobreviver e era sempre às duas garrafas de cada vez (para dois, vá). Fiquei mais vezes de ressaca em dois meses do que em dois anos inteiros, mas desconfio que tenha sido uma de muitos. Desta vez, bebo para celebrar. Mas celebrar o quê? Olhem, a maior parte das vezes coisas tão simples como o dia ter chegado ao fim e eu ter conseguido fazer tudo o que tinha para fazer. Se isto não merece celebração! É claro que acaba por funcionar como a cenoura à frente dos olhos do burro: vá, produz, que logo à noite podes abrir outra garrafa. Especialmente se for daquele vinho que sabemos que não desilude. Eu tenho uma marca de eleição, mas não pode ser sempre, porque é puxadota; para o dia a dia, andamos a beber este há um ano. Ele diz que já só me falta começar a beber vinho ao pequeno-almoço e que, qualquer dia, me lembro de organizar um brunch só para ter desculpa, o que me deu uma bela ideia…

Descobri que há um nível de alcoolemia que gostaria de manter constante. São aqueles dois copos, nem mais nem menos, e sou a pessoa mais afável do mundo, despreocupada, solta, produtiva e criativa, nada chata, nem implicante nem com vontade de me meter numa gruta e só sair quando a humanidade estiver extinta. O terceiro copo geralmente estraga tudo e é o que basta para acordar com dor de cabeça, mas creio que o truque estará em descobrir o intervalo certo entre acabar o segundo copo e começar a segunda ronda de dois copos, mantendo assim sempre aquele estado perfeito em que, sem estar sequer perto da embriaguez, já me sinto a pessoa que gostaria de ser.

Faz-me lembrar um filme que vimos há umas semanas, Another Round, de Thomas Vinterberg e com o maravilhoso Mads Mikkelsen, que até já ganhou uns quantos prémios. É sobre quatro amigos que decidem fazer uma experiência para testar a teoria de um filósofo norueguês de que os humanos já nascem com menos 0,5% de álcool no sangue e, então, eles tentam manter sempre um nível de álcool constante no sangue com o intuito de melhorar as suas vidas a nível profissional e pessoal. É claro que nem tudo corre como previsto, duh!, mas o filme vale bem a pena e a teoria tem, pelo menos para mim, o seu quê de interessante.

Mas sobre a minha semana, ia dizer que tenho motivos de sobra para celebrar e que, portanto, mereço bem o meu Heinrich: acabei a tradução e revisão de dois projetos enormes que comecei, um, em Outubro, e o outro, em Janeiro, e posso finalmente ser paga; a minha filha mais nova lembrou-se de arrumar a sua roupa por iniciativa própria; o meu pai já foi vacinado contra a covid-19; e descobri que a Mia Farrow é uma grandessíssima cabra tresloucada, pelo que a minha admiração pelo Woody Allen continua intocável e já posso argumentar – munida de factos! – quando alguém me acusar de gostar dos filmes de um pedófilo.
Cambada.

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