Errata

O meu primeiro bilhete de identidade veio com o meu nome mal escrito. Apesar de o meu pai ter pedido à senhora do guichet, olhe, veja lá se não se enganam no nome da miúda. Enganaram-se. O meu pai teve de tirar outra manhã de férias, eu tive de faltar à escola e lá fomos outra vez para Vila Franca de Xira, plantarmo-nos à porta da conservatória, para emendar um erro que não foi nosso.

Erros destes com a minha identidade sucederam-se ao longo da minha vida. As pessoas, para não admitirem o seu erro ou ignorância, disseram-me as coisas mais descabidas. A melhor de todas foi na biblioteca de Alenquer, em que teimaram que eu é que me tinha enganado a escrever o meu próprio nome. Nunca mais ninguém me voltou a dizer tamanho disparate. Normalmente, o erro é do sistema, ou do corretor, nunca de um dedo demasiado diligente.

Portanto, desde que comecei a traduzir e a rever livros e a ver o meu nome na ficha técnica que temia o dia em que iria abrir o livro e ver o meu nome mal escrito. É claro que faço sempre um disclaimer no primeiro livro que traduzo para uma editora. Por favor, atenção ao meu nome, o corretor ortográfico costuma corrigir automaticamente. Mas, ao segundo livro, relaxo. Já me conhecem, já não é preciso avisar…

Normalmente, o livro chega por correio, eu abro-o, confirmo que está tudo bem, volto a fechá-lo, ponho na estante e nunca mais olho para ele. Até ontem. O dia em que abri um livro e não estava tudo bem.

Fiquei doente. O livro como carvão incandescente nas minhas mãos. Avisei a editora. Lamento imenso, não sei como passou. Mas a verdade é que passou. Falei com a revisora, que me ajudou a tentar perceber a cadeia de acontecimentos.

Não me apetece deixar cair o assunto assim tão facilmente, quero chamar os responsáveis à razão e garantir que não volta a acontecer, nem a mim nem a mais nenhum desgraçado com um nome a que «faltem» letras. Provavelmente, a pessoa da paginação ou da gráfica, zelosa, achou que estaria a fazer um bem à humanidade ao inserir aquele cê que faltava. Por causa disso, tenho agora dois livros em casa que identificam uma tradutora que nada me diz. Fora estes dois, que vou devolver à editora, existem mais não sei quantas centenas de fraudes iguais pelas livrarias do país. Possibilidade de emenda, só com nova impressão.

O meu marido acha que estou exagerar, porque sempre fui picuinhas com o meu nome, complexos e mais não sei quê. Outra amiga também acha que não é caso para tanto, a ela também se enganam amiúde no nome. Pois, mas num livro? Na prova de trabalho?

Estarei a ser mimada ou será simplesmente uma questão de direitos? Qual será a melhor postura profissional? Deixar cair o assunto e ressalvar, na próxima tradução, a necessidade de atenção redobrada do nome da tradutora? Ou insistir que não se trata apenas de uma questão de pronúncia ou preferência, e que nem todas as pessoas envolvidas na cadeia de produção de um livro traduzido têm o direito ou competências para fazer alterações depois da revisão? Se tivessem escrito mal o nome do autor, estava o caldo entornado, mas o do tradutor pode passar, uma palmadinha nas costas e fica tudo bem? Serei só eu a ver o quão errada está esta mentalidade?

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Manto de invisibilidade

Tenho tido alguns desgostos de amizade nos últimos meses. Pessoas de quem me considerava amiga que, de um momento para o outro, sem que nada o fizesse prever, deixaram de me considerar sua amiga. Colegas que me levavam no coração, me recomendavam e convidavam para tudo e mais alguma coisa e, de repente, foi um ar que se lhes deu. Já fiz e refiz na minha cabeça diálogos existentes e imaginados, já pensei no que posso ter feito, ou deixado de fazer, que os ofendesse, já avaliei o grau de plausibilidade de várias hipóteses que me surgiram, nestas minhas reflexões, sobre o que me levou a ser persona non grata, mas não consigo arranjar uma explicação. Não encontro ação em mim, praticada ou intentada, que pudesse ter posto em risco a nossa suposta amizade e não consigo apontar na linha cronológica uma data para um acontecimento a partir da qual as coisas tivessem mudado. Sinto-me uma idiota por não perceber aquilo que, para os outros, parece óbvio e, ao mesmo tempo, estou naturalmente magoada.

Quis o acaso que, por volta da mesma altura, começasse também a ser ignorada no restaurante aonde costumo ir buscar comida para o meu almoço, nos dias em que me falta tempo ou paciência para preparar a marmita ou, simplesmente, quando o prato do dia me agrada. Aconteceu mais vezes do que o desejável para quem paga e espera ser bem servido – ou simplesmente servido, como se verifica neste caso – esquecerem-se do meu pedido. Vou lá ou telefono e peço determinado prato para daí a uma hora e, quando o vou buscar, não encontram o meu pedido. Por vezes, conseguem convencer-me a conformar-me com o outro prato do menu, aquele que eu originalmente não escolhi por algum motivo que, para mim, é mais do que pertinente (como não gostar ou fazer-me mal), mas também já houve uma vez em que já não tinham nada para me servir. Passa uma pessoa uma hora a pensar no que vai comer ao almoço, descansadinha da vida porque tem a refeição assegurada e acaba por sair de lá com as mãos a abanar. Não me parece muito fixe que isto aconteça mais do que uma vez a um cliente regular, ou estarei a ser muito exigente?

Não falei com outros clientes e, portanto, não sei se o mesmo tem acontecido a outras pessoas e se resume, portanto, à terrível falta de organização do pessoal. Mas, acrescendo ao exposto nas linhas acima, não encontro outra justificação para que isto me ande a acontecer que não seja a de me ter tornado invisível. Ou talvez o tenha sido sempre. Terei certamente uma capa natural de invisibilidade à minha volta que me torna na pessoa que, estando lá, não está, nem faz falta.

Em retrospetiva, pensando na pessoa que sempre fui, isto faz todo o sentido. Sempre odiei ser o centro das atenções, não danço em público porque sou demasiado consciente do meu corpo, sinto vergonha alheia em demasiadas circunstâncias, prefiro grupos mais pequenos, odeio estar em multidão, sucede amiúde que não me oiçam à mesa de um jantar de grupo, estar sozinha não é coisa que me incomode, nem que me assuste, e deixei de fazer festas de anos porque tenho medo que as pessoas se esqueçam de vir. Passo facilmente despercebida e, se isso no meu trabalho é uma mais-valia, na vida pessoal é uma bela merda.

Devia ter ido para o clube de teatro da escola quando tive oportunidade.

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Falta de ar

Talvez haja uma justiça na mão que dá e depois tira. Talvez tenha o divino propósito de te ensinar alguma coisa, de não deixar que te acomodes nas fases boas da vida. Se tiveste um primeiro semestre espectacular, cheio de emoções fortes, amor e sucessos profissionais, pois, muito bem, aperta o cinto, porque te aguarda um segundo semestre que te vai arrastar em turbilhão na direcção oposta, tirar-te o ar do peito, sugar-te a energia do corpo e a vontade do espírito, um segundo semestre de tensão, conflito e mágoa. Vais-te lembrar de coisas que tinhas recalcadas, reprimidas, engavetadas no baú poeirento dos confins da memória, e vais ver-te aflita para tentar perceber o que fazer com elas, qual última depositária da batata quente que te queima os dedos. Procuras respostas. Voltas ao psicólogo. Viras-te, quase desesperada, para a espiritualidade e descobres nela um certo conforto, mas envergonhas-te. Procuras actividades que te limpem a alma e ponham a mente em standby, que não te façam pensar nas coisas. O trabalho não te traz paz, pelo contrário, deixaste de ter prazer nele. Queres mandar os clientes às urtigas, acabar com tudo, tirar um ano sabático e viver do ar e do sol. Lembras-te do blogue, pensas em voltar a escrever, talvez te ajude a arrumar ideias, em jeito de terapia, mas deixaste de te identificar com o nome, já nem sabes se alguém te lê, e quem, e isso é coisa para te aumentar a ansiedade. Não queres que te volte a faltar o ar agora, este fim-de-semana não, a tua filha faz 9 anos. Fica para depois, pensas nisso depois. Agora, bebe o vinho.

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Coxos

O Iggy Pop é coxo. Já era coxo antes de se ter tornado um deus em palco, prova de que quase 4 cm de diferença de uma perna para a outra não são impedimento para pessoas com garra. Nunca me tinha apercebido dessa diferença, até ter visto este vídeo.

Caramba. Eu tenho 2,2 cm de diferença da direita para a esquerda. Depois disto, a forma como me vejo claudicante nos nossos vídeos familiares caseiros vai certamente mudar.

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Mães e filhas

Sempre que eu ou uma das minhas filhas fica doente ou se aleija, a minha mãe pergunta-me: «Então, filha, como foste arranjar isso?». Já estou muito habituada a ouvi-lo e não devia ligar, mas a verdade é que entendo sempre uma nota de acusação por trás da pergunta. Não é um «Então, filha, como é que isso aconteceu?», que seria algo perfeitamente adequado no contexto de uma lesão, perna partida ou fractura exposta. Também não é um «Então, filha, onde é que apanhaste?» ou «Quem é que te pegou?», no caso de qualquer doença infecciosa e contagiosa. Não. É mesmo um «Então, filha, como foste arranjar isso?» ou na variante também muito comum «Então, filha, como é que fizeste isso?», o que, francamente, não deixa grandes margens para dúvida de que a grande culpada sou eu, mãe negligente e desastrada que se deixa infectar com covid e ainda infecta as filhas. Uma vez, disse-lhe que me sentia incomodada com o tom de acusação, ao que ela, ressabiada, se escudou logo com «é só uma maneira de dizer».

Agora que apanhei covid, mais de dois anos depois de a doença ter chegado a Portugal – já ter conseguido fintar a doença durante tanto tempo foi um feito -, a minha mãe voltou à sua velha «maneira de dizer». Eu, grandessíssima burra, que me deixei infectar numa viagem que nem queria fazer, porque gosto de andar aos caídos pela casa de lenço na mão e nariz a pingar, cansando-me só de estender a roupa e sem paciência para nada. Há gente assim, fazer o quê, é pespegar-lhes com um autoteste pelas ventas para ver se acordam para a vida.

À minha filha mais velha, que tem o dom da inconveniência e da perspicácia, o que nem sempre joga bem, não me apeteceu explicar que a relação entre mães e filhas nem sempre é fácil, porque cada uma acha que tem sempre razão. Infelizmente, acho que ela há de lá chegar sozinha.

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