O reverso da medalha

Desde que Putin invadiu a Ucrânia, comecei a usar o Twitter com mais regularidade. Metade do meu feed são políticos, a outra metade, a força do povo. Os Anonymous são os meus hackers preferidos. Vejo o noticiário infantil alemão para conseguir explicar às minhas filhas aquilo para que me faltam palavras. Há oito dias que tenho muito medo por todos nós, já chorei muito, não largo as notícias, mas esta guerra não é minha. Não fui eu que tive de deixar tudo para trás. Não fui eu que tive de decidir entre ficar e lutar pelo meu país e, provavelmente morrer, ou salvar as minhas filhas, mas deixar o meu marido para talvez nunca mais o ver. Hoje, no restaurante, olhava para elas, alheadas no seu mundo, e pensava que, um dia, se não em breve, esta pode deixar de ser a nossa realidade.

Por outro lado, na minha esfera pessoal, estou a viver coisas incríveis. Há sempre o reverso da medalha, seja bom ou mau, mas não deixo de pensar se terei direito a sentir que talvez agora, aos 41 anos, neste terrível ano bastardo da nova década de 20, a vida esteja finalmente a revelar o que tinha guardado para mim. É capaz de ser melhor desfrutar do momento enquanto posso.

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Resposta

À pergunta anterior encontrei a resposta. O período de agendamento para vacinar a mais velha passou e nós não a inscrevemos. Não pensamos vaciná-las até termos respostas que nos satisfaçam, ou até a isso sermos mesmo obrigados, porque queremos muito viajar ou porque a discriminação – não podes entrar no restaurante, não podes comprar nesta loja, não podes ir à escola (ou pensam que não vai chegar aí?) – vai tornar-nos a vida insuportável. Também não penso tomar a dose de reforço, se chegar à minha faixa etária, porque tive uma forte reação à segunda dose que me levou ao hospital dentro de uma ambulância. Achei que morria, com o inchaço a formar-se-me na garganta, ali naquele descampado da Moagem, ele a agarrar-me a mão e a dizer-me que a ambulância estava quase a chegar e eu sem conseguir parar de tremer, a sentir os maxilares ficarem cada vez mas rígidos, com o pânico a instalar-se, como é que eu agora respiro.

Não.

Tenho-me sentido ali à beira do antivacinismo, a ver de rajada entrevistas a pediatras que aconselham esperar, a abanar a cabeça durante o noticiário da noite. Mas não sou antivacinas nem negacionista e ai de quem me compare à malta que não vacina os filhos com nenhuma vacina, não me comparem, que me salta a tampa!

Talvez arranjem um neologismo para designar todos os que, como eu – que deve haver – acreditaram nisto desde o início, acataram todas as ordens, vacinaram-se, protegeram-se, tiveram cuidados com os seus, passaram meses sem ver os mais velhos, para os proteger, deixaram de dar beijos e abraços, cancelaram festas, ficaram fechados em casa e depois, um dia, acordam e percebem que, valendo de alguma coisa, não vale de muito.

Eu chamo-lhe Os Fartos Desta Merda. Pelo menos, é como me sinto.

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Pergunta

Se eu disser que não estou a pensar vacinar as minhas filhas contra a Covid-19, apesar de me ter vacinado a mim, será que isso faz de mim uma pessoa incongruente? É engraçado isto, porque ainda ontem fui com a mais velha levar o reforço do sarampo e a primeira dose da HPV e nem sequer questionei, aliás, fiquei feliz por termos acesso a estas vacinas, por ser um direito garantido, e aliviada por não ter deixado passar o período em que a devia vacinar, mas depois leio que já abriu o autoagendamento para a faixa etária das minhas filhas e só tenho vontade de chorar. E não é de alegria ou alívio.

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Níveis

Desde que vim de Istambul e até ao Natal, a minha vida assemelha-se a um videojogo: a cada tarefa executada vou passando de nível. Como já tenho a agenda tão cheia até Janeiro, resolvi não me preocupar com os níveis seguintes enquanto não passar aquele em que me encontro. Não é uma abordagem na qual tenha pensado muito, é antes uma espécie de colete salva-vidas. Recuso-me a falar ou a pensar no que tenho a fazer num nível futuro enquanto não arrecadar todas as moedinhas daquele em que me encontro.

Ora, os níveis são:

  • Apresentação no zoom
  • Entrega do livro no Goethe (o que parece uma coisa simples exige uma logística tal que tem direito a todo um nível)
  • Aniversário da Alice
  • Vacina dos 10 anos da Inês (antes que ela faça os 11, pelo menos)
  • Entrega da tradução do livro 1
  • Entrega da tradução do livro 2
  • Aniversário da Inês (só pode fazer depois se tiver levado a vacina!)
  • Aniversário do pai + Natal (como um dia para tratar das prendas não é suficiente: acrescentar outro nível algures)
  • Começar a ler livro para recensão
  • Passagem de ano
  • Entrega da recensão
  • Tradução do livro 3

Supõe-se que continuo a respirar entre níveis.

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Secas

E o que dizer daquelas pessoas palavrosas, mas que só sabem falar da mesma coisa? É como se, por muitos anos que passem, nada mais de interessante lhes tivesse acontecido ou mantivessem os mesmos interesses de toda uma vida, tivessem deixado de sair de casa ou tivessem deixado de conhecer pessoas novas, revissem sempre as mesmas séries de televisão ou relessem sempre os mesmos livros. Aos interlocutores pouca alternativa resta senão ouvir as mesmas coisas pela enésima vez e consolar-se com a ideia de que tais momentos lhes servem para refrescar a memória ou dar coesão ao relato. Mas, por norma, servem apenas para consolidar a opinião de que das duas uma: ou estão perante pessoas altamente aborrecidas e desinteressantes ou então são pessoas muito seletas na escolha dos temas que desenvolvem com que interlocutores. Têm a carteira dos assuntos novos e picantes para discutir com quem lhes importa e, a quem não passam cartão, desenrolam o pergaminho dos tópicos batidos sem sequer se dar ao trabalho de trocar a ordem com que os apresentam. Eu devo inserir-me no grupo dos interlocutores insignificantes, porque apanho com cada seca…

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