Assalto do alter ego

Andava uma pilha de nervos. Sonhei várias vezes que chegava atrasada à minha própria apresentação. De cada vez que treinava, a minha voz embargava ou faltavam-me as palavras. Não se pode dizer que tenha pensado em desistir, mas confesso que não estava muito confiante.

Considero-me uma pessoa introvertida. Odeio falar em público ou ser o centro das atenções. Até falar ao telefone é coisa que evito. Lembro-me dos meus nervos quando, na faculdade, tinha de apresentar trabalhos orais. Não sei se alguma vez me senti completamente à vontade. Além disso, nunca achei que isto fosse uma coisa que melhora com a idade. Uma vez introvertida, sempre introvertida.

Curiosamente, quando comecei a minha apresentação no âmbito de uma conferência de tradução na minha antiga faculdade, no sábado passado, não estava assim tão nervosa. Só um pouco, talvez o necessário para espevitar a adrenalina. Mais curiosamente ainda foi que, ao longo de 50 minutos, eu deixei de ser eu para passar a ser outra pessoa qualquer, desinibida e com capacidade para fazer piadas. Ainda me pergunto se fui assaltada por um alter ego ou algo do tipo espírito santo, porque a verdade é que não só correu bem, como me diverti imenso a falar e partilhar a minha experiência. O melhor de tudo foi olhar para a minha audiência e perceber que as pessoas não estavam a apanhar uma grande seca e, no fim, algumas virem ter comigo só para dizer que tinham gostado muito. Não foi a TED Talk do ano, mas foi bonito. Foi o meu momento. E, para a próxima, não vou duvidar tanto de mim (emoji coração).

Continue Reading

Nêsperas

Kika

A nossa gata Kika não vem a casa desde domingo. Da última vez que a vi, dirigia-se ao canavial do outro lado da rua com uma lagartixa na boca. Atrás dela ia outro gato, que não é dali, mas gosta de ir atazanar as nossas gatas. Não estavam, contudo, com ar de perseguição. Ela ia à frente com uma presa na boca e ele ia atrás dela, curioso. Coisas de gatos.

Quando, no outro dia, ela não apareceu para comer ou dormir, achámos estranho, mas não nos preocupámos muito. Afinal, os gatos são seres livres. Precisam de actividade, de caçar, de dormir ao sol e eu deixo as minhas fazerem tudo isso, não as prendo, porque posso. Vivo numa vivenda com espaço exterior e instalei uma portinhola para gatos na porta da cozinha. Elas entram e saem quando querem. Outros gatos também entram quando querem. Já sair é quando nós mandamos.
Ao segundo dia, comecei à procura dela. Primeiro a pé, pela zona, chamando-a naquele tom de quem anuncia paparoca (porque ela respondia sempre), depois de carro, atenta às bermas da estrada, com o coração em sobressalto sempre que avistava uma massa indistinta na margem. À tarde, fomos afixar anúncios. Gata procura-se. Gatinha perdida. Quem a vir, por favor avise. E fotos.
Decidi aventurar-me no canavial. Eu já estou muito melhor com o meu medo dos gafanhotos. Já os tolero mais, a horta ajuda-me nisso. Vejo-os a saltar à minha frente e, se não forem daqueles grandes e castanhos, penso sempre que eles têm mais medo de mim do que eu deles. Ou o truque será não olhar para baixo. Porque eles estão lá, mas eu se não os vir, está tudo mais ou menos bem.
A Olívia, a gata mais nova, veio atrás de mim, a fazer corridas à minha frente, possivelmente feliz por eu estar no parque infantil dela. Num recanto do canavial, escondida atrás do quintal do vizinho, uma grande nespereira, cuja existência desconhecia. Aproximei-me. Reparei que havia algumas nêsperas, mas quase todas nos ramos superiores. Ainda consegui apanhar umas quantas, que guardei no regaço da camisola e segui caminho por entre as canas, com as nêsperas no colo e a Olívia no meu encalço.

Quando regressei a casa, não trazia a gata, mas trazia cinco nêsperas. Serão boas?, perguntou-me ele. Se forem, tens de lá ir com um escadote, respondi eu. Se forem boas, até lá vou com um escadote. Partilhámos uma. Era boa. Doce. Maravilhosa.

Se virem a Kika, digam-lhe que estamos à espera dela. E que traga um escadote. Temos nêsperas docinhas para apanhar.

Continue Reading

Bilhete

Quando vivia em Berlim, escrevia muito. Tinha um blogue, muito mais activo do que o actual, mas também escrevia em cadernos, os meus Cadernos de Berlim. Além disso, escrevia histórias e contos, praticamente todos inacabados. Quando regressei a Portugal, continuei a escrever, em blogues e cadernos, mas a inspiração e vontade foram-se desvanecendo com a maternidade. Cheguei a pensar que era Lisboa que não me estimulava ou que para escrever precisava de sofrer ou de me sentir sozinha.

Ontem, o Nick Cave, no fabuloso conversa-concerto que deu em Berlim, e a que eu assisti embevecida na quinta fila, falou disso, em resposta a uma pergunta sobre se para o processo criativo é necessário sofrer ou ter sofrido. “That’s insane”, respondeu, com aquele ar de quem nunca ouvira pergunta mais parva.

Fiquei a pensar nisso. Desde há alguns meses que recuperei a vontade de escrever, curiosamente não neste blogue, vontade esta que nada tem que ver com o meu nível de sofrimento ou solidão. Simplesmente, um dia, a vontade voltou a estar lá. Talvez seja mesmo assim tão simples.

Aproveito uma manhã chuvosa em Berlim, a minha última manhã da minha curta estadia, para ressuscitar este blogue dos mortos. Sem promessas, nem compromissos. Apenas para dizer que ainda aqui estou e que talvez volte. Berlim inspira-me, traz de volta aquela nostalgia boa para a escrita, faz-me pensar nos “e ses” da vida, faz-me estar desperta para as coisas pequenas. Mas, ei, eu já não vivo em Berlim. E não sei se a minha vida boa em Sesimbra é suficientemente boa para escrever sobre ela. É claro que se o Nick Cave lesse isto agora, dir-me-ia certamente, “Girl, that’s insane!”. E eu piscar-lhe-ia o olho e diria: “I know”.

Continue Reading

Da bondade

Ela abordou-me no parque de estacionamento. A minha primeira reacção foi a reacção de qualquer mulher que é abordada num parque de estacionamento: desconfiar, perscrutar cada canto à procura do cúmplice que me vai saltar em cima e roubar-me o carro, ou pior, agarrar bem na mala, lembrar-me já de uma resposta antes de ouvir a pergunta que tem para me fazer, preparar-me para desatar a correr.

– Ando a pedir para comprar uma lata de leite para o meu bebé.

Ah, esta é fácil. Vou oferecer-me para lhe comprar a lata. Tenho a certeza de que vai dizer que não, porque ela só quer o dinheiro.

-Quer comprar uma lata de leite? Então, venha daí que eu compro-lha.
-A sério? – O seu rosto iluminou-se – Oh, obrigada, muito obrigada.

Raios. Eu pensava que ela não queria o leite.

Enquanto subíamos as escadas rolantes, ela ia-me contando como era difícil encontrar farmácias que tivessem aquele leite para o bebé que sofria de alergias e precisava de leite adaptado. Eu ia fazendo contas à vida, leite adaptado não é barato, ao mesmo tempo que ia mentalmente desfiando um rol de possíveis fraudes de que estaria a ser vítima:
1) A trapaceira ter-me-ia distraído junto ao carro, fazendo-me esquecer de trancar o mesmo e agora já alguém me tinha roubado o aquecedor que eu comprara há meia hora;
2) A trapaceira estaria a distrair-me com a conversa para alguém me arrancar a mala ou meter-me a mão à carteira sem eu dar por nada;
3) Qualquer outra manobra de diversão não prevista em 1) e 2).

Entrámos na farmácia e ela dirigiu-se imediatamente à secção de puericultura. Não havia o leite em questão, ter-se-ia de encomendar, à tarde já lá estaria. Mas ela não quis esperar. Pensei Já te livraste de gastar uma pipa de massa e estava pronta para me despedir quando ela me explica, com uma lágrima tímida a espreitar no canto do olho, que não podia esperar até à tarde, porque não era dali, era de Campolide e tinha vindo até Almada para se encontrar com uma mulher que lhe ia dar roupa para os três filhos, mas que não tinha aparecido. Agora não tinha roupa, nem dinheiro para voltar para casa, nem leite para o bebé, a quem dava mama, mas a mama não chegava, ela chorava muito e ainda por cima tinha alergias. Insistiu em mostrar-me as fotos dos filhos e eu vi-a numa outra vida, com base na cara, sem espinhas nem olheiras, com cabelo liso e sorriso na cara, ao lado de três miúdos sorridentes. Era um antes e um depois, e o depois era agora e estava à minha frente a dizer que tinha muita vergonha de pedir. Ela tinha um ligeiro sotaque, mas falava sem erros, como se cá estivesse há muito tempo, talvez vinda da Roménia, ou da Síria, mas estou apenas a especular. Talvez devesse ter-lhe perguntado o nome, a proveniência, mas debatia-me interiormente com a desconfiança e a compaixão. E se fosse eu? Se um dia a vida mudar e for eu a pedir dinheiro para comprar comida para as minhas filhas, à porta de um supermercado? Se o nosso país entrasse em guerra e a minha família tivesse de fugir? Se fosse eu a ser constantemente repudiada por pessoas que me podiam ajudar, mas que não queriam por pura desconfiança?
Quando é que deixámos de acreditar no Outro? Quando é que passámos a pensar só em nós, na depilação a laser que vamos fazer a seguir, uma prioridade tão de primeiro mundo?
Fui ao multibanco, levantei 20 euros e dei-lhos, para o leite ou para voltar para casa.

Dali fui almoçar, com uma bola no estômago, a recriminar-me por não lhe ter dado mais dinheiro, porque com 20 euros não compra uma lata de leite adaptado e um bilhete de autocarro. Passei o almoço todo a debater-me com fiz pouco, fiz o suficiente, procura aí no Google casos recentes de burla que envolvam leite adaptado…

De volta ao parque de estacionamento, voltei a encontrá-la. Abordava outras mulheres. Na mão, segurava uma embalagem de fraldas. Pensei que a comprara com o meu dinheiro e tranquilizei-me um pouco. Talvez fosse mesmo verdade, talvez precisasse mesmo do dinheiro para o filho. Dirigi-me ao meu carro, o aquecedor ainda no banco de trás. Ela viu-me e veio ter comigo. Queria mostrar-me o saco de fraldas que outra senhora lhe tinha comprado e agradecer-me outra vez por ter aberto a excepção; a outra senhora ajudara-a, porque eu a ajudara e agora de certeza que ia encontrar mais alguém para lhe dar o dinheiro para o autocarro. Eu tinha sido amável e ela estava-me muito agradecida. Dei-lhe um abraço e desejei-lhe boa sorte. Não lhe perguntei o nome, nem de onde era, mas vim todo o caminho de volta a pensar naquilo e na reacção automática que as pessoas (eu) têm de nem quererem ouvir quando alguém lhes pede ajuda. Assumimos (assumo) logo que nos querem enganar, mentir, assaltar, ou que o dinheiro terá a única finalidade de aplacar os vícios. Senti-me envergonhada, eu que não sei o que é a vergonha de ter de pedir dinheiro num parque de estacionamento.

Quando cheguei ao escritório, encontrei sem querer esta imagem. Não sabia que hoje é o Dia Mundial da Bondade, mas acho que agora já não me vou esquecer.

Continue Reading

Educar para a diferença (e para o amor-próprio)

As minhas filhas começaram a reparar na minha perna aí por volta dos 3 anos. Até lá, eu era simplesmente perfeita aos seus olhos. É claro que nunca me passou pela cabeça esconder-me delas, mas estava curiosa – e um pouco receosa – pela forma como iriam acolher a diferença na mãe.

A Inês começou por perguntar se as minhas cicatrizes nunca iam passar. Quando percebeu que não, passou a ser um facto consumado que a mãe tinha cicatrizes e pronto. Com a mesma idade, a Alice engraçou com o meu dedo grande, que está sempre encavalitado no outro. Vinha ela e puxava o dedo para o lado. “Pronto, mamã, já está direito”. Mas o dedo teimava em retomar a posição e ela ralhava com ele, “Dedo maroto!”. Eu deixava, achava piada que me quisesse consertar. Com quase cinco anos, já percebe que o dedo é mesmo teimoso e não vai ficar direito por muito que ela tente, mas de vez em quando lá vem ela tentar endireitá-lo.

Com a Inês a caminho dos 8, as coisas já são mais complexas. À medida que foi crescendo e medindo a vida à sua volta, começou a fazer outro tipo de perguntas. Porque tens uma perna mais fina? Porque tens um pé mais pequeno? Dói-te? E coisas do género. Fui tentando responder sempre de maneira a normalizar a situação. Ou seja, sim, eu tenho uma perna diferente, mas isto para mim é normal e para ti também deve ser. Nem sempre consigo. Não reajo muito bem, por exemplo, quando ela aponta o meu pé às amigas e diz: Já viste, a minha mãe tem um pé mais pequeno do que o outro. Sinto-me pequena, mais pequena do que o meu próprio pé, e tenho vontade de lhe tapar a boca com fita cola. Normalizar, Mónia, normalizar.

Também não sei muito bem o que dizer quando ela demonstra pena de mim. No outro dia, estávamos a ler uma história qualquer com umas ilustrações meio cubistas, em que uma menina tinha pernas de altura e espessura diferentes. Diz ela, “Esta menina tem uma perna mais grossa do que a outra”. “Olha, é como eu!”, respondi eu, num tom talvez demasiado esfuziante. Ela olhou para mim e o seu olhar inundou-se de uma espécie de pena, ou terá sido compaixão? “Pois”, respondeu ela, com aquele jeito de comiseração de quem não sabe o que dizer perante a infelicidade alheia. Era impossível não reparar, era urgente intervir. “Estás com pena de mim?”, perguntei eu. “Acho que sim”, respondeu. Fiz-lhe algumas perguntas para lhe mostrar porque é que não havia razão para ter pena. “Achas que eu sou infeliz por ter a perna assim?” – Não; “Achas que eu tenho vergonha da minha perna?” – Não; “Já sei, se calhar é porque sabes que tenho dores, não é?” – Sim. “Mas as dores passam, não há razão para teres pena, pois não?”. E aqui ela encolheu os ombros e disse: “Oh, na verdade eu não sei bem o que significa ter pena”.

Nesse momento, se eu fosse psicóloga ou intelectualmente iluminada, ter-lhe-ia explicado a diferença entre pena e compaixão. Mas limitei-me a abraçá-la, dar-lhe um beijo na testa e dizer: “É um sentimento difícil de sentir e explicar. Falamos sobre ele outro dia” e continuei a história. Deixá-la reflectir sobre isso (a sementinha ficou lá) e deixar-me a mim também preparar-me para isto. Se quero que as minhas filhas não tenham pena de mim, eu própria tenho de deixar de ter pena de mim. Se quero que as minhas filhas aceitem a minha diferença como normal, como parte de mim, eu própria tenho de aceitar a minha diferença como normal, como parte de mim. Se eu quero que as minhas filhas gostem delas tal como são, eu tenho de lhes mostrar como se faz isso pelo meu exemplo.

Agora já percebo o que quis dizer a minha médica quando eu a informei, de lágrimas nos olhos, que ia ter outra menina (eu sempre quis rapazes, vai o universo…). Disse-me que eu tinha agora uma excelente oportunidade de criar mulheres fortes, cheias de auto-estima e amor-próprio, que o mundo bem precisava delas. Confesso que naquele momento não alcancei. Mas, hoje em dia, só posso agradecer ao universo. E o melhor é que, para isto, não preciso de manuais de instruções, livros sobre parentalidade ou mezinhas caseiras. Está tudo em mim.

Continue Reading