Há um ano

Faz por esta altura um ano que descobri estar grávida do bebé que não foi. Na altura, ainda não sabia disso, naturalmente, e a notícia chegou como uma surpresa de quem passou anos à espera de que lhe fizessem uma festa-surpresa e depois, quando efetivamente lha fazem num aniversário ímpar e desengraçado, já não sabe o que sentir. Foi num domingo de manhã e lembro-me de estarmos sentados na cama, as miúdas ainda a dormir, e ele ter lançado a pergunta “e agora”. A manhã decorreu como a manhã normal de partida, as miúdas na piscina enquanto nós deixávamos a casa pronta para os próximos hóspedes, mas ao almoço já não bebi vinho.

Ainda não tinha voltado a esta casa desde esse dia. E não faz mal, não é como se lá tivesse entrado desta vez e tivesse sido bafejada com o ar pesado das memórias tristes. É só que ligo muito a datas e às coincidências. E ontem, no dia em que regressei à casa, foi o dia da grávida, então comecei a lembrar-me destas coisas. O primeiro aniversário do filho perdido está próximo e tenho de me preparar para a avalanche. Divido-me em várias hipóteses. Talvez pensar nestas coisas me faça mal. Talvez me faça melhor falar sobre elas. Talvez possa tudo ficar como estava, estava tudo tão bem. Enxoto os pensamentos como a uma mosca chata e viro-me para apanhar sol do outro lado.

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Diário do Sono (2) – Piolhos, livros e séries

Tenho dormido bem na última semana, o que me deixa sempre uma acutilante sensação de desconfiança enquanto, a medo, aguardo a próxima insónia não anunciada. Mas desfruto das minhas noites bem dormidas, não pensem que não, se é que se pode dizer que uma noite interrompida para aliviar o corpo dos líquidos produzidos é bem dormida, mas não me quero queixar de barriga cheia.
(Será do Melamil?)

Regressamos lentamente às rotinas. Que digo? Regressámos subitamente às rotinas. Depois de praticamente quatro semanas de férias, divididas por dois meses, o trabalho clamava por atenção, como um bebé impaciente à espera da papa. As miúdas chegaram das férias com piolhos e devia ter dado graças por, no dia em que cheguei a casa, ter tido de adiar o banho demorado e quente por que ansiava pelo tratamento de piolhos e não devido a outro problema qualquer, como nos terem assaltado a casa ou ter recebido uma fatura astronómica para pagar, por exemplo. Mas não, fiquei bastante aborrecida e passei a semana num estado de aflição constante perante nova praga que ameaçava, como sempre, ser interminável.

Tratados os piolhos, fomos à Feira do Livro, que me deixou um amargo de boca. A Hora H é como uma espécie de corrida aos supermercados antes do caos mundial provocado por uma pandemia (parece que foi ontem), um açambarcamento de papel para a higiene mental. Não gostei e não repito. Fiquei cansada, fartei-me de correr e fazer contas, separar da lista os livros mais recentes dos com mais de 18 meses. A Feira do Livro é para passear com calma, para parar nas bancas e folhear os livros. Por isso, evito os fins de semana e dispenso os tróleis de viagem cheios de pechinchas a 50%. Ainda assim, trouxe 11 livros, mesmo sem ser na hora dos abutres, vale sempre a pena.

Em casa, vimos a série White Lotus, da HBO, que recomendo vivamente. Há algum tempo que não via algo tão bom, hilariante, mas mordaz, com aquela sátira social que deixa um desconforto no ar extinguida a gargalhada. Com personagens muito bem construídas e um final surpreendente no seu género (porque a vida é um bocado assim, quem tiver visto percebe), o único desgosto foi já não ter mais episódios para ver.

 

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Diário do Sono (1)

Há já algum tempo que penso que devia começar um diário do sono, mas não porque se tenha dado alguma mudança súbita no meu padrão de sono, nem tão-pouco para tentar apurar causas. Se há coisa que percebi ao longo dos últimos vinte anos é que durmo mal e pronto, não importa que não tenha bebido café depois das três da tarde, que tenha evitado o telemóvel ao deitar, que esteja cansada de morte; se o meu cérebro decidir que eu não durmo, a coisa não se dá, ou muito mal. Mas mesmo que os meus padrões de sono não se tenham alterado por aí além nos últimos tempos, este verão notei que até durante as férias eu durmo mal. Estive de férias, no total, durante quase um mês e tive uma a duas valentes insónias por semana, isto sem contar com o tempo de que preciso normalmente para adormecer ou as vezes que acordo durante a noite. Diz o senso comum que deveria ser ao contrário, a pessoa média dorme mal no ramerrame do trabalho-casa e faz grandes sestas quando nada mais a preocupa além do tempo de secagem do fato de banho entre mergulhos.

Então, tenho andando a pensar nisto de escrever um diário do sono, e talvez se aproveite alguma coisa daqui. Por exemplo, as pessoas que dormem pouco são capazes de ser mais interessantes do que as pessoas que dormem muito, porque as primeiras têm mais tempo para pensar nas coisas, para ler e fazer cenas enquanto o sono não vem. Depois também há os vários conflitos que se dão internamente nos mal dormidos, como acontece sempre que oiço alguém dizer que dorme bem e que, se dormir menos de nove horas por dia, anda a bater com a cabeça nas paredes. Sinto o mundo virado do avesso e a balança muito desequilibrada e então começo a pensar nos vários utensílios com que podia asfixiar estes dorminhocos… enquanto eles dormem e eu não.

Esta noite, por exemplo, foi uma noite típica em que tive muita dificuldade em voltar a adormecer depois de um desvario noturno da minha mais nova. Como resultado, dormi menos de seis (cinco?) horas e, ultrapassado o mau humor das primeiras horas da manhã, acabei por conseguir ignorar o ardor nos olhos e fazer-me ao dia. Será este o meu superpoder?

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