Balanço pós-balnear

Quando estou na praia ou numa piscina, gosto de observar as pessoas à minha volta. O facto de estarmos todos de biquíni ou fato de banho, com mais pele a descoberto do que o contrário, com mais ou menos inibições, mais ou menos celulite, mais ou menos flacidez, põe-nos todos mais ou menos em pé de igualdade. Ali, somos todos iguais, porque todos partilhamos o facto de, 15 dias por ano, sermos obrigados a assumir o corpo que carregamos o resto do ano.

Já me senti mais acanhada em mostrar o meu. Hoje em dia, já me apresento com facilidade em roupas com menos tecido, principalmente no que toca ao comprimento da bainha. Gosto de andar de calções e de sentir as pernas ao vento. Não me importa se pareço muito branca no início da época, e tenho pena de quem se esconde atrás da menstruação ou da depilação por fazer para não despir os calções nem se permitir o direito de estar na praia com descontracção, sem preconceitos autodirigidos nem pudor em bambolear as carnes.

Nos momentos em que não tenho de jogar raquetes ou avaliar a perfeição dos pinos debaixo de água, observo os outros à minha volta. Famílias ou casais, estrangeiros ou turistas nacionais, ninguém escapa à minha atenção. Afinal, de biquíni somos todos iguais e o potencial de encaixar num qualquer perfil é inesgotável. As minhas efabulações são especialmente profícuas no parque aquático, onde o manancial de estudo chega a deixar-me mais tonta do que subir ao alto do Kamikaze.

Gosto de imaginar vidas e profissões para senhores grisalhos de tanga, mulheres magras com tatuagens de mandalas a espreitar atrás das alças cruzadas do fato de banho da natação, mães de três filhos completamente descontraídas na toalha enquanto os filhos, de sete, cinco e três, se vestem sozinhos, sem disputas nem implicações, como fará ela isso? Pelos seus cabelos loiros-quase-brancos, depreendo que venham de um país nórdico e imagino prontamente as crianças ordeiras a colocar gorros, luvas e galochas antes de saírem para o frio sueco que já deverá fazer-se sentir quando regressarem das férias no sul da Europa.

Mas é quando se põem a olhar fixamente para mim e para a minha perna que me ocupo mentalmente de lhes arranjar um espaço e uma vida de fantasia. Se não conseguem parar de olhar para mim, escrutinando até que ponto vai a minha deficiência, se é só no membro inferior ou se é mais profunda, analisando-me comportamentos e reacções, perscruto-as eu também, imaginando que só olham porque são ortopedistas famosos que vêem em mim um fantástico caso de estudo e que me interpelarão certamente antes que a manhã acabe com a promessa da derradeira cirurgia que me vai endireitar para sempre. Naturalmente, isso nunca aconteceu – ter sido observada na praia por um ortopedista que estivesse disposto a consertar-me – mas ajuda-me a amolecer a vontade de me indignar ou de fulminá-los com o olhar até perceberem a medida da sua inconveniência. Em vez disso, ponho-os num qualquer consultório, redacção editorial ou T2 sombrio num bairro periférico, organizo-lhes horários, listas de afazeres e menus semanais, arranjo-lhes problemas ou resolvo-lhes outros, o marido infiel, a chefe implacável, a sogra metediça, o filho adolescente, e logo me esqueço de me indignar, de me revoltar com quem olha para mim como se eu é que tivesse um problema, quando ali, desnudados e despudorados, somos todos iguais nos nossos fatos de banho e corpos medianos, vamos todos, mais cedo ou mais tarde, voltar às nossas rotinas, pôr os filhos na escola, inscrever-se em actividades, arranjar formas de deixar de ter tempo (obrigada, Eliete, por me teres aberto os olhos) para justificar passar o resto do ano a sonhar com aqueles 15 dias sem obrigações, listas ou horários. E, mais cedo ou mais tarde, acabamos todos por precisar de sermos consertados por um ortopedista fictício.

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Nunca é tarde para nos desafiarmos

Não venho aqui há algum tempo. Bom, não é verdade. Tenho vindo, abro o painel para escrever um post novo, mas não sai nada. Não se trata de writer’s block, mas sim de não saber por onde começar. Primeiro, estive uma semana num retiro budista de meditação e mindfulness e, quando cheguei, levei algum tempo a pôr as ideias em ordem e a reencontrar o meu lugar. Um retiro destes, ou talvez qualquer tipo de retiro, pois nunca tinha feito um, transforma-nos inevitavelmente de alguma forma, mesmo que não nos faça ver a luz, como costumo dizer. Depois disso, andei ocupada com a horta, com o trabalho e, no meio disto tudo, ainda decidi concorrer a um concurso literário. Talvez por isso, por ter canalizado todas as energias na escrita do conto, não arranjei força ou inspiração para escrever sobre a minha vida. Mas, garanto-vos, estou viva e de boa saúde. Tenho uma nova rotina de meditação, encontrei um grupo de meditação que se reúne semanalmente e que me permitiu conhecer novas pessoas muito inspiradoras, tenho trabalhado na horta todos os dias, o que me dá uma sensação de paz incrível (apesar dos gafanhotos que por lá andam, que já não me incomodam como dantes) e a participação no concurso trouxe à superfície um sentimento maravilhoso de superação, de conquista de um sonho de há muito tempo, da certeza de que nunca é tarde para nos desafiarmos. Não tenho quaisquer ilusões de ganhar, acreditem. Mas só o facto de ter concorrido, de ter conseguido escrever um conto que me agradou, do princípio ao fim, para mim significa que já ganhei. E o resto é conversa.

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Recomeços

(Sesimbra, penúltimo dia do ano)

Não sei bem como começar este post. É o primeiro post de 2018 e merecia pompa e circunstância, frases a rolar sobre uma carpete vermelha e confettis a pontuar as palavras. Mas não me sinto própria para festejos e, ultimamente, a minha escrita (sim, recomecei a escrever com caneta e papel) aproxima-se mais da poesia atormentada de uma Sylvia Plath, mas sem a poesia nem a elegância. Ficamos, portanto, só com as tormentas.

O fim do ano foi, assim, atormentado (prometo que já procuro novos adjectivos). Já chorava antes de saber que tinha motivos para chorar.

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Personagem

Tenho na cabeça uma ideia para uma história. Já lhe engendrei o enredo e delineei algumas personagens. Já escrevi algumas linhas e até desenhei um mapa da vila, que, à falta de imaginação, não difere muito da minha.  Falta-me o fim, o que vai ser um problema, porque nunca me lembro do final dos livros, é como se o importante fosse o durante e não o fim. Mas todas as histórias precisam de um fim, assim como de uma personagem principal. Andava com dúvidas se seria um homem ou uma mulher. Tendia para uma mulher. Seria casada, solteira, divorciada, nova, cinquentona, com filhos, sem? E de que cor seriam os cabelos? E o tom de pele? E o jeito de andar e a forma de falar?

Esta manhã, enquanto esperava pelo café, olhei para a porta no exacto momento em que entrou uma mulher. Cabelos compridos, escuros, ondulados e rebeldes, tez morena, estatura baixa. Nem gorda, nem magra, proporcional talvez, sendo que as roupas simples deixavam antever uma barriguinha descaída. Alças, leggings, chinelos da praia, uma âncora tatuada na parte interior da perna, uma mala de camurça aberta, por onde espreitavam papéis desordenados e uma carteira demasiado cheia. As feições eram bonitas. um pouco exóticas, daquele exótico que tanto passa despercebido como chama a atenção. Os cabelos desalinhados caídos nos ombros e a mala abandonada na mesa enquanto espreitava atenta a televisão, alheia a tudo o resto. Meteu conversa comigo, nada demais, tinha a ver com o que dava nas notícias, e eu soube logo que tinha a minha personagem – que, tirando a tatuagem, era em tudo parecida comigo. Deve ser assim que os escritores encontram os seus alter-egos. Mas eu não sei, que não sou escritora.

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