Utopias

Há muitos preconceitos à volta do Festival Boom. O principal é que “aquilo é só droga”, mas gostava de vos convidar a comparar estes dois artigos (este sobre o Boom, para uma população de 41 mil pessoas, e este sobre o Meo Sudoeste, para uma população de 23 mil) para que tirem as vossas conclusões.

Ou seja, é óbvio que há droga, montes dela, por todo o lado, mas, ao contrário do que se possa ouvir por aí, ninguém vos mete droga na comida nem na bebida, não há droga na água da rede (!), nem ninguém vos obriga a consumir o que quer que seja. Sendo todos adultos, cada um faz o quer e tem livre arbítrio para escolher. A única diferença é que ali ninguém tem de se esconder (nem é olhado de lado por não querer). É tudo às claras, e com preocupação pela segurança de quem consome (há mil pessoas destacadas para socorrer experiências que corram menos bem, ou excessos e problemas de desidratação, e há um posto de teste de pastilhas e ácido pela Kosmicare).

Mas o Boom não é só isso. Também não é, de modo simplista, um festival de música electrónica, apesar de ser um elemento bastante presente e de aquela batida nos acompanhar de dia e de noite – estranha-se, mas depois entranha-se, assegura-vos quem não gosta(va).

O Boom é, segundo aquilo que me foi dado a ver na semana que lá estive, o modelo de uma sociedade perfeita. Uma utopia que nos é dada a experimentar durante uma intensa semana, de 2 em 2 anos (excecionalmente haverá repetição para o ano, mas depois retoma a regularidade normal).

Uma sociedade em que o cuidado com o planeta não é apenas uma preocupação, mas um modo de vida. Uma sociedade em que as pessoas se entreajudam e se preocupam umas com as outras, apesar de estarem imersas na sua experiência individual. Parece haver um acordo tácito de “o bem-estar do outro é o meu bem-estar” e de “posso ser livre sem interferir com a rua liberdade”. Uma sociedade em que os corpos são normalizados e a nudez, parcial ou total, é vista como uma escolha individual, um modo de expressão, sem desencadear olhares reprovadores, de lascívia ou de algum modo incómodos. É tudo natural, não é sexual. A mulher pode andar de seios à mostra por onde quiser sem ter (medo) de ouvir piropos. Não imaginam o quão libertador é isto! Uma sociedade que não é patrocinada por marcas, nem dominada por credos, partidos políticos ou nacionalidades. Em que tudo funciona, também porque cada um faz a sua parte para cumprir as regras (apesar de não haver regras) sem queixume.

Vim de lá com uma profunda satisfação por ter feito parte de algo assim, tão superior aos sistemas que conheço. Cheguei a casa com a missão autoimposta de perceber como posso sentir a paz de espírito que lá senti, mesmo não estando reunidas as mesmas condições na vida real. Infelizmente, depois do síndrome de abstinência do Boom que senti nos dias que se seguiram, recebi várias chapadas da realidade que me transportaram de imediato para o meu estado pré-Boom: stress, ansiedade, queixume, insatisfação, irritação.

Depois de saber como é não sentir nada disso, sinto-me ainda mais frustrada. Mas nada como uma experiência transformadora e transformativa para nos fazer questionar e mudar aquilo que não está bem. E há muita coisa em mim que não está bem, no meu trabalho, na minha falta de tempo e disponibilidade mental para fazer as coisas que estimulam a criatividade e me trazem paz, como a costura e a jardinagem, na minha impaciência, nos filmes que faço na minha cabeça e em que acredito, apesar de não passarem de pensamentos, nas minhas inseguranças, no stress que me permito ter porque parece que não conheço outra coisa. Mas agora conheço, e tem de ser possível.

Tem de ser possível.

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Novembro

Novembro passou depressa e, ao mesmo tempo, aconteceu tanta coisa. Já me passou a azia, felizmente, mas não passei no teste do NaNoWriMo. É engraçado dizer isto, porque se fosse a contar o número de palavras que traduzi em troca de dinheiro, ultrapassariam as 50 mil em muito, mas as 891 palavras que escrevi para mim, por prazer, sem ser para ganhar dinheiro nem para inglês ler, dizem-me que ainda tenho um longo caminho a percorrer nisto de ter hábitos de escrita. Um dia, talvez. Resolvi não me preocupar com mais coisas do que aquelas que consigo gerir. Daí ter classificado as minhas obrigações por níveis e a necessidade de ir vivendo consoante os vistos que faço nos itens da lista. Ainda assim, foram duas vezes no mês passado em que acordei, ou não consegui dormir, com o coração aos saltos, a saliva a subir-me à boca como se estivesse prestes a vomitar, uns enjoos que só eu sei, e a cabeça às voltas sem se conseguir deter num pensamento por mais de cinco segundos. Também vos acontece? Gosto de pensar que é só da tiroide, que voltou a descontrolar-se, mas na verdade acho que é a nova exposição profissional a que não estou habituada que me tira o sono de vez em quando. Ter o meu nome num livro, ser uma das responsáveis pelo prazer que o leitor tem, ou não tem, a ler determinado livro é coisa para me consumir. Finjo que está tudo bem, que até gosto, que o mereço, mas a verdade é que me pelo com medo de falhar. Acresce o facto de, pela primeira vez na vida, aos 41 anos, ter pedido um empréstimo para comprar um carro e ver-me a braços com taxas de juro e merdas que tais. Não percebo nada disto, mas finjo que sim, para o banco não me tomar por parva, e peço simulação atrás de simulação, como se fosse forreta ou picuinhas. Não sou, mas todo o dinheiro que faço sai-me do pêlo, não tenho funcionários que façam o trabalho por mim nem trabalho eu para outros; se não trabalhar, não ganho, então, quando é altura de o gastar, que saiba bem para onde vai. E depois o carro é eléctrico e há toda uma logística em que pensar e não me venham dizer que o lítio é o demónio, porque me informei bem sobre isso e oiçam o episódio 8 da temporada 2 do podcast Do Zero sobre carros eléctricos antes de me virem moer o juízo.

De modos que o Natal está quase aí e eu com a cabeça tão longe, mas se tivesse escrito este post no NaNoWriMo, teria adicionado mais 450 palavras à conta.

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Cenas de um casamento

Estamos juntos há catorze anos. Mais do que durou o casamento de Mira e Joseph em Scenes of a Marriage. Já tivemos a nossa crise, se bem que de outro tipo, sobrevivemos a dois confinamentos e a uma perda gestacional. Não posso prever se vamos durar outros catorze, mas comunicamos hoje muito melhor do que há uns anos e nenhum dos dois tem medo de ficar sozinho. Se o amor alguma vez nos faltar, pelo menos sabemos que não ficamos juntos pelas razões erradas.

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Caixinha dos comprimidos

Há coisas sobre os nossos pais de que só nos apercebemos quando já não vivemos com eles há bastante tempo e vamos dormir lá a casa. Por exemplo, que ainda guardam a mania de cortar as embalagens de desodorizante quando já só falta aquele restinho que não sai pelo orifício e, para evitar a entrada de ar, para não ressequir, os taparem com molas da roupa. Não sei se consigo explicar bem isto, acho que são daquelas coisas que só vistas.

Ou então, talvez mais fácil de visualizar, que têm, cada um, uma caixa de medicamentos que permite planear as tomas da semana inteira, com profundidade para até 10 comprimidos por compartimento (pequeno-almoço, almoço, lanche, noite, de segunda a domingo), mas com compartimentos tão estreitos que é preciso uma pinça (e muita paciência) para tirar os comprimidos de lá.

E, com isto, descobri que a minha mãe toma 4 comprimidos em jejum e 9 ao pequeno-almoço. Tive medo de perguntar com era o resto do dia.

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Quarto de menina

Esta noite, vou dormir no meu quarto de menina. Não está exactamente igual; já não está cá a aparelhagem onde ouvia a Super FM, mas o edredão é o mesmo e ainda está pendurado o quadro de cortiça com os bilhetes dos festivais.

É só uma noite. Já tomei as gotas de melamil e vou pôr os tampões, porque me lembro da última vez em que aqui dormi, quando vim da Alemanha, e de todos os barulhos me terem feito confusão, os passos dos meus pais, o ranger das escadas, as portas a fechar no trinco. Ao fim de três noites, não aguentei e mudei-me para o sótão. Três meses depois, mudei-me para Campo de Ourique e assim foi, de mudança em mudança, até chegarmos ao dia de hoje em que partilhei uma garrafa de tinto com o meu pai ao jantar e deixei a minha mãe a contar histórias de embalar enquanto me vim enroscar no meu quarto de menina.

Lá fora, chove que se desunha.

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