Anos 90

Quando o cabelo era para mim uma insignificância, temíamos um bando de vândalos que roubavam mochilas, relógios e ténis aos miúdos à saída da escola. Corria o ano de noventa e dois. O líder do bando, um indigente que engravidara precocemente uma rapariga, era conhecido como O Corvo e foi um dia entrevistado pelo jornal da freguesia. Morríamos de medo do Corvo, como se este planasse sobre os pavilhões da escola à espera de nos abocanhar no curto trajecto até ao autocarro em que regressávamos a casa. Eu não sabia, nesse tempo, se era mais seguro correr para o autocarro, também repleto de malfeitores, em que um motorista louco seguia a cem à hora quase capotando nas rotundas, se seguir para casa a pé por um túnel em que um grafito me aconselhava a destruir as ondas e não as praias. O Corvo podia ver-nos sem que o víssemos, pensava eu. De vez em quando, lá se chorava mais uma mochila Monte Campo ou outro par de ténis Redley. Em dias piores, um desgraçado de dez anos era mandado nu para casa. Nos intervalos das aulas, os miúdos corriam às traseiras dos pavilhões ao grito de «está ali o Corvo!». Nunca vi ninguém, contudo.

Ainda não sei o que pensar de Esse Cabelo, da Djaimilia Pereira de Almeida, mas este parágrafo é um relato fiel de um dia normal na C+S nos arredores da Grande Lisboa que frequentei nos anos 90. Caramba, até me arrepiei.

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Ossos do ofício

Há três hipóteses para o que aconteceu aqui: 1) a tradutora começou bem, mas depois o prazo começou a apertar e já se sabe que a pressa é inimiga da perfeição; não houve uma revisão adequada; 2) eu estava distraída no início; e 3) os erros começaram a incomodar-me tanto que não resisti a marcar os dois últimos terços do livro.

Acho que isto merece uma cartinha à editora.

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Um dia, talvez seja capaz de falar sobre isso

 

Os dias depois de uma insónia têm tudo para correr mal, mas hoje foi um dia bom, pelo menos a partir da tarde. Para tal contribuiu uma série de coisas que passo a listar por ordem cronológica: consegui grelhar uma dourada do mar sozinha, eu e o grelhador, e não ficou crua nem demasiado seca; a minha filha mais velha fez-me um truque que me fez rir alto e eu não estava à espera de me conseguir rir alto tão cedo; vieram finalmente arranjar as portadas que, de tanto baterem com o vento, deixaram de se fixar, de se fechar ou de abrir, consoante o caso; também arranjaram a maçaneta da porta da cozinha e, de repente, parece que temos uma casa nova; os meus cunhados fizeram uma limpeza aos livros que já leram e não querem manter, ou não leram e não querem ler (também tenho uns quantos desses) e deixaram-me resgatar os títulos que me interessassem, o que me deixou bastante feliz como só uma mão-cheia de livros novos consegue; mudei, pela enésima vez, de sítio os móveis do quarto da costura/das brincadeiras/de hóspedes porque mudo sempre o sítio dos móveis quando preciso de arranjar um propósito e agora ando muito necessitada de um propósito. Ainda não estou satisfeita com o resultado, mas ter a meta de destralhar e organizar a minha mesa da costura é capaz de ser aquilo de que preciso para evitar dar por mim parada a olhar para o infinito, a sentir o vazio que ficou na minha barriga. Um dia, talvez seja capaz de falar sobre isso.
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Uma página de cada vez

O cerco começa a apertar.
Uma sucursal de um banco ao pé do meu escritório fechou; no agrupamento de escolas das minhas filhas alunos, professores e auxiliares começam a cair, que nem peças de dominó. Quase parece março, em que a cada hora nos chegavam novas e cada vez mais aterradoras notícias. Todos os dias, há alguém que conhece alguém que testou positivo. Uma mãe de uma colega da irmã de uma colega da mais velha. É pequena esta terra, em que parece que toda a gente se conhece, que toda a gente esteve com toda a gente, mesmo quando sabemos impossível darmo-nos todos com todos. Estamos a chegar àquela fase em que pensamos quando  ― e já não se ― é que nos vai calhar a nós.

Tirando isso, tento revestir a minha vida da normalidade que lhe quero dar. Li “A História de Uma Serva” em cinco dias, fruto de um fim de semana prolongado sem eventos sociais, e iniciei a leitura em família de “O Feiticeiro de Oz”, que comprei na Lello, um capítulo por noite. Gosto de ouvir a Inês a ler, acho que lê muito bem, não é por ser minha filha, e surpreende-me a capacidade de a Alice, seis anos, reter a história de um dia para o outro, mesmo que sempre me pareça que não está a prestar a mínima atenção à leitura… De resto, ando a debater-me com “O Quarto de Giovanni”, que me parece tão despido de toda a profundidade que pensava encontrar em James Baldwin. É culpa das expectativas, eu sei. Aconteceu-me o mesmo com o Manuel Vilas, que é capaz de ter sido a maior seca lamechas que me passou pelas mãos nos últimos anos.

Trabalho muito e durmo mais ou menos, enquanto me preparo para acolher novas mudança na nossa vida. Uma coisa que este ano nos ensinou é que não vale a pena ter expectativas, seja na vida seja com Baldwin, e que pouco mais nos resta do que ir lendo uma página de cada vez.

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Eliete

Fui à biblioteca buscar um policial nórdico para ler de enfiada nos últimos dias de despedida do Verão, no Algarve, mas deparei-me com “Eliete”. Uma amiga falara-me dele, estava curiosa. Além disso, havia a questão da capa. Já desde o tempo em que comprava CD, deixo-me muitas vezes levar pelas capas. Às vezes, sou positivamente surpreendida, mas é sempre um tiro no escuro.

Dulce Maria Cardoso era, também, uma estreia para mim, mas eis que, menos de 30 páginas depois, dei por mim completamente rendida à narrativa, identificada com pedacinhos de todas as mulheres da história, mas principalmente com Eliete, claro, a que leva “a vida normal” como todas nós.

E este prenúncio de ter no meu regaço um livro dos bons e de ter descoberto (tarde, mas sempre a tempo) mais uma excelente escritora é coisa para me comover e fazer eriçar os pêlos dos braços. Sou assim, de comoção fácil. Especialmente ao reparar no que diz a lombada: PARTE I.

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