Quaresma

É terça-feira de Carnaval e as minhas miúdas não se mascararam. Acho que ninguém se lembrou, só ontem quando vimos uns palhaços no nosso passeio higiénico. Não devem ter sentido muita falta, porque a Inês disse que já tem vergonha de se mascarar e a Alice não se mostrou entusiasmada quando eu disse que podia ir ver se o fato da Ana do ano passado ainda lhe servia, mas a minha mãe acha que lhes está a ser roubada uma parte essencial da infância. Bom, não vamos falar no que é que realmente lhes está a ser roubado com esta pandemia e o estudo em casa, mas podemos falar no que me está a ser roubado a mim: paz de espírito. Sinto que as redes sociais e a dependência do telemóvel que desenvolvemos (posso falar por todos?) durante este isolamento contribuem deveras para isso. E como amanhã começa a quaresma, decidi, assim de impulso, fazer uma quaresma de detox digital. Apesar de não sermos religiosos, eu e o Tiago costumávamos fazer aquilo a que chamávamos de “quaresma infiel” – basicamente, era aproveitar 40 dias estipulados por outras pessoas (contados a partir da quarta-feira de cinzas) para implementar algum hábito ou deixar outro. Fizemos coisas giras como 40 dias sem televisão, 40 dias sem doces, 40 dias sem álcool (nesta eu não entrei, brincas!), e agora vou fazer 40 dias sem redes sociais. Também podia fazer 40 dias sem café, porque a máquina vai hoje para reparação e não acreditei quando me disseram que só ia demorar 7 dias úteis…

Não sei se consigo totalmente, porque há certas coisas de trabalho para as quais me dá jeito estar ligada, mas já vai ser uma ajuda simplesmente apagar as apps do meu telefone. Depois o resto logo se vê.

Vou continuar aqui no blog, porque me faz falta – e faz bem -, mas não vou avisar sempre que publicar, portanto vão ter de fazer como antigamente e vir cá ver (também há coisas práticas como o Feedly, mas também isso acho que já está ultrapassado).

Para celebrar, deixo aqui uma foto muito pouco instagramável das melhores papas de aveia que já fiz e das quais não vou dar a receita.

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2020 ou o Ano da Paixão

E cá estou eu outra vez, a poucos dias do fim do ano, a fazer um apanhado das coisas mais importantes que me aconteceram ao longo dos últimos 12 meses. Sei que foi um bom ano. Ainda assim, socorro-me do telefone, onde tenho capturados os momentos mais importantes da nossa vida em família, porque se assim não fosse, provavelmente não me aperceberia de que consegui – melhor do que à primeira vista me parece – fazer jus à palavra que, no início do ano, escolhi como intenção para 2019: abrandar. Apesar de termos andado feitos saltimbancos em várias viagens (acho que nunca havíamos viajado tanto a quatro – Varsóvia, norte de Espanha, Toscana – sinal de que as miúdas estão mais crescidas e que já nos dá mais prazer a todos aventurarmo-nos fora de portas), sinto que foi um ano de muita introspeção, muito trabalho interior, muitas leituras e trabalho criativo.

Retomei as costuras, aprendi a bordar. Li 31 livros e obriguei-me a conhecer outros autores graças ao desafio que me coloquei de não comprar livros; ao invés, convidar amigos a emprestarem-me livros à sua escolha. Os amigos aderiram e eu fui gostando (ou não) de cada livro à minha maneira, com diferentes intensidades; descobri escritores que me haviam passado ao lado, como Eduardo Galeano, ou de quem nunca ouvira falar como a divertida Abbi Jacobson; retomei o contacto com pessoas que andavam fora do meu radar e estreitei relações com pessoas que muito admiro.

Aqui a lista dos livros que me emprestaram para este desafio:

De resto, foi um ano calmo, sem sobressaltos de saúde. O maior desgosto foi termos ficado sem a nossa gata Kika, que perdemos para a estrada ou para outra família; nunca saberemos o que lhe aconteceu. Um dia estava aqui, no outro não estava. Sem corpo nem rasto, resta-nos a imaginação e a esperança no coração.
Foi também o ano de dizermos adeus à horta. Depois de dois anos de intensa aprendizagem e comunhão com a natureza e a comunidade, chegou a altura de aceitar que precisávamos do (vasto) espaço tomado pela horta para encaixarmos outros elementos da nossa vida. Foi, provavelmente, uma das decisões mais difíceis que tive de tomar, principalmente porque a tomei sozinha, mas foi a coisa certa a fazer.

Em termos profissionais, cresci mais um bocadinho. Estou mais segura de mim, encontrei uma pessoa para me ajudar (ou terá sido ela a encontrar-me a mim?), e dei a minha primeira palestra work related but not only numa conferência para tradutores, que teve uma receção muito para lá dos meus sonhos.

No último trimestre do ano, fiz um retiro que me ajudou a encontrar a palavra que quero que defina o meu 2020: paixão. O facto de ir fazer 40 anos em 2020 pode ou não ter influenciado a escolha da palavra; não consigo deixar de sentir que estou perigosamente a chegar a meio da vida. Tenho pensado bastante no que ando aqui a fazer, no tempo que ainda tenho, no que quero fazer da segunda metade da minha vida, onde e com quem não quero desperdiçar o meu tempo. Talvez seja parvo isto, chegar aos 40 e começar logo a pensar na morte. Ou talvez seja apenas um marco da vida, cuja simbologia nos faz inevitavelmente ficar alarmados com a velocidade da passagem do tempo. «Quanto tempo mais vais esperar?», é a pergunta que me martela na cabeça. Quanto tempo mais vais esperar para fazer outra tatuagem, para escrever um livro, para ires ao Boom, para viajares mais, para aprenderes, para ensinares, para partilhares, para te apaixonares? Não quero esperar mais. Assim de repente, Janeiro parece-me um excelente mês para acabar com a espera.

Bom ano.

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Nunca é tarde para nos desafiarmos

Não venho aqui há algum tempo. Bom, não é verdade. Tenho vindo, abro o painel para escrever um post novo, mas não sai nada. Não se trata de writer’s block, mas sim de não saber por onde começar. Primeiro, estive uma semana num retiro budista de meditação e mindfulness e, quando cheguei, levei algum tempo a pôr as ideias em ordem e a reencontrar o meu lugar. Um retiro destes, ou talvez qualquer tipo de retiro, pois nunca tinha feito um, transforma-nos inevitavelmente de alguma forma, mesmo que não nos faça ver a luz, como costumo dizer. Depois disso, andei ocupada com a horta, com o trabalho e, no meio disto tudo, ainda decidi concorrer a um concurso literário. Talvez por isso, por ter canalizado todas as energias na escrita do conto, não arranjei força ou inspiração para escrever sobre a minha vida. Mas, garanto-vos, estou viva e de boa saúde. Tenho uma nova rotina de meditação, encontrei um grupo de meditação que se reúne semanalmente e que me permitiu conhecer novas pessoas muito inspiradoras, tenho trabalhado na horta todos os dias, o que me dá uma sensação de paz incrível (apesar dos gafanhotos que por lá andam, que já não me incomodam como dantes) e a participação no concurso trouxe à superfície um sentimento maravilhoso de superação, de conquista de um sonho de há muito tempo, da certeza de que nunca é tarde para nos desafiarmos. Não tenho quaisquer ilusões de ganhar, acreditem. Mas só o facto de ter concorrido, de ter conseguido escrever um conto que me agradou, do princípio ao fim, para mim significa que já ganhei. E o resto é conversa.

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Novo desafio – nadar

Passou-me uma coisa pela cabeça e decidi que, este ano, vou participar na Travessia da Baía de Sesimbra. A ideia não foi minha, foi do Tiago, que é homem dos desafios malucos, mas pareceu-me quase imediatamente uma boa ideia. Apesar de não o ter admitido logo, pois eu tenho um bocado de medo de peixes, deixei-me convencer pelo meu histórico de desafios pessoais. Aquela vez em que saltei para a água no Tofo, em Moçambique, para ver o tubarão-baleia foi dos momentos mais tenebrosos da minha vida. Mas, lá está, mesmo assim saltei. E uma vez deixei morrer o meu canteiro por lá morar uma família de gafanhotos e me ter recusado a continuar a regá-lo, mas agora tenho um talhão nas hortas urbanas com tudo o que implica de convívio com bicharada. Andei 23 anos a esconder as minhas cicatrizes até ao dia em que comprei uns calções e os usei efectivamente. Passei 74 dias sem comer açúcar, incluindo no Natal, e ouvi toda a gente à minha volta, até a minha médica, a dizer que não eram capazes de tal façanha. Mas eu fui. Portanto, eu tenho isto em mim: uma força qualquer que me impele a enfrentar as coisas das quais passei toda a vida a fugir. Isto é mais ou menos recente, veio com a idade, ou com a maternidade, ou simplesmente desde que tenho ao meu lado uma pessoa cheia de autoconfiança. Então, porque não continuar a aproveitar este dom?

E como tenho andado a nadar muito (umas das coisas que mudei na minha vida, quando decidi que queria abrandar, foi ter trocado o treino altamente intensivo e desgastante do ginásio por yoga e umas braçadas descontraídas que me limpam a alma e ajudam a manter o corpo activo), é mesmo o momento perfeito para me meter nesta aventura. Ando a nadar duas a três vezes por semana e tento fazer sempre, no mínimo, 1000 metros, em 40 minutos. A Travessia é de 1500 metros e só tenho 30 minutos para terminar depois de o primeiro concorrente ter chegado ao fim. Ou seja, tenho de fazer 1500 metros no mesmo tempo que faço agora 1000-1100 m. Será que consigo? Tenho 9 meses para treinar, por isso essa parte não me assusta. Tento imaginar como será nadar em águas escuras e geladas com peixes por baixo de mim e sei que tenho muito treino mental para fazer. Mas, neste momento, não duvido de uma coisa: vou ficar aterrorizada, mas vou conseguir. E acho que é um excelente desafio!

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Abrandar. Parar. Respirar.

Já sabem que o ano, para mim, não começou da melhor maneira. Mas a morte do Dexter foi apenas a gota de água porque, na verdade, não me tenho vindo a sentir no melhor de mim desde há alguns meses. Na altura, andei por vários médicos, convencida de que algo de errado se passava com o meu corpo.  Mas para além de uma bexiga hiperactiva (que já me dá que fazer) e uma insulino-resistência perfeitamente controlada, eu estou de perfeita saúde. As oscilações de humor não podem ser justificadas com a tiróide e também não será a tendinite a desprover-me de toda a vontade própria. Tenho muitos dias em que me esforço por me manter à tona de água, como já o disse aqui, e, se pudesse, passava os dias deitada a ler. Há dias que nem isso, tal é a desvontade que se me acomete.

Felizmente, não sou pessoa para me deixar andar e costumo ter muita noção de mim própria. Autoconsciência. Tentei diagnosticar o problema, mas acabei por me afundar na culpa de achar que não tenho razão para me sentir deprimida. Tenho uma boa vida. Tenho a profissão que sempre quis, gosto do que faço, sou bem-sucedida e confio nas minhas capacidades. Tenho uma casa confortável com espaço exterior. Não apanho trânsito para o trabalho, não passo muito tempo a conduzir. Tenho duas filhas lindas e saudáveis. Tenho um marido maravilhoso. Não sou rica, mas também não ando a contar os tostões, o que me permite não estar sempre preocupada com questões financeiras. Tenho uma boa relação com a maior parte das pessoas que são importantes para mim: família, amigos, comunidade da vila. Estou integrada e gosto de viver aqui. Tenho hobbies e interesses, viajo de vez em quando e até tenho uma horta. Pergunta para queijinho: então, o que me falta?

Pensei muito nisto e a única conclusão a que consigo chegar é: não me falta nada. Tenho é coisas a mais. Com coisas, não estou só a falar de coisas materiais, mas também. As coisas físicas, a roupa, a tralha, a desarrumação, complicam-me com os nervos e pesam-me na rotina. Penso frequentemente que, se tivéssemos menos roupa, com certeza eu teria menos roupa para lavar, dobrar, arrumar. Se as miúdas tivessem menos brinquedos, desarrumariam menos. É este o raciocínio. Mas estou também a falar das coisas abstractas que me ocupam os tempos livres, como eventos, compromissos e actividades. Às vezes leio artigos sobre isto de andar sempre a correr, de querer ir a todas, de ter de fazer um visto em tudo. Connosco dá-se o caso de termos muito amigos (e que tal se desses graças por isso?) que gostam de estar sempre em festa, mas também se dá o caso de acabarmos por sermos nós a organizar muitos convívios em nossa casa. São as festas de anos, é a sardinhada atual, foi o Magusto na Horta, ou, às vezes, só porque sim. Não é preciso referir a parte boa disto, as vantagens que há em estarmos sempre rodeados de amigos. Mas há o reverso da medalha que é o trabalho que isto dá: o antes, o durante e o depois. Antes, é preciso preparar a comida e arrumar o espaço. Durante é preciso garantir que a comida chega, ir repondo os talheres e os guardanapos, ir recolhendo os copos sujos, ir buscar mais gelo, confraternizar nos entretantos, como boa anfitriã. Depois, a parte mais chata, é preciso limpar, lavar a loiça, arrumar. Às vezes, demoramos alguns dias nesta fase… Enquanto que o Tiago faz isto tudo com uma perna às costas, sendo um organizador de eventos nato como é, eu não. É quase sempre uma fonte de stress. Algumas coisas já vão sendo automáticas, claro, mas tanta festa começa a pesar-me, confesso. Quero continuar rodeada de amigos, sim, mas não precisa de ser com tanta frequência, nem precisa de ser sempre cá em casa.

O mesmo se aplica a outros eventos sociais. O Tiago diz-me sempre que, se as pessoas nos convidam, é porque fazem questão que nós vamos. Claro que sim, percebo isso perfeitamente. Mas quando isso implica desdobrarmo-nos em três para comparecermos a três eventos num só dia (sim, já aconteceu…), não será um bocadinho demais? E o nosso tempo em família, a quatro? E o tempo passado em casa, simplesmente a descansar, a brincar ou a arrumar a roupa (tinha de vir…)? Num destes eventos organizados por nós, houve duas pessoas que não vieram pela simples razão de precisarem de descansar e ficar em casa. Foi esta a razão que me deram e não tenho motivos para duvidar da sua validade. Aliás, confesso que fiquei invejosa. Eu também preciso de ficar em casa a descansar, pensei eu, mas não tenho coragem de o dizer como justificação para não comparecer a um evento. Mas os amigos devem compreender estas coisas, certo? Os amigos compreendem que não somos super-heróis dotados com o poder da omnipresença.

Há tempos mandaram-me um artigo em alemão sobre o stress dos tempos livres. É uma contradição, diz o autor, que o tempo que usamos para recuperarmos do stress do dia-a-dia acabe por ser, afinal, uma fonte de stress adicional. Achei piada à comparação que ele faz entre tentar marcar um encontro com um amigo e arranjar consulta para o ortopedista: ambos só têm vaga daqui a seis meses! Já me aconteceu olhar para a agenda e perceber que tenho todos os fins-de-semana ocupados durante os próximos três meses. Tem mesmo de ser assim? Deixa de haver espaço para a espontaneidade, para fazer o que nos dá na gana, para passarmos a tarde a fazer trabalhos manuais, para nos demorarmos aqui e ali ou ir ver uma exposição que acabou de inaugurar. Tem mesmo de ser assim ou será que podemos encontrar um equilíbrio entre os eventos sociais e a necessidade individual de espaço para nos libertarmos de horários e calendários, da pressa, das obrigações? Afinal, o nome “tempos livres” indica precisamente isso: liberdade, inexistência de obrigações, direito à escolha, simplesmente estar.

Atenção: com este discurso todo, pode não parecer, mas é claro que eu aprecio o tempo passado entre amigos, mesmo que isso implique uma correria constante. É como diz o autor do tal artigo alemão: o problema não são os outros, o problema sou eu, porque não tenho coragem de dizer não, de dizer que também preciso de tempo para mim. Temos medo de desiludir os amigos ou que eles deixem de nos convidar. Ou, então, somos daqueles que sentem a obrigação de fazer qualquer coisa. Não temos planos para sábado à noite? O horror, o caos, a calamidade! Sim, quando tens 20 anos. Mas quando tens 37, duas filhas, uma agenda cheia e, de repente, te apercebes que as miúdas vão dormir à avó, o teu marido foi de viagem e tu não tens planos para sábado à noite, como é? Aconteceu-me a semana passada. E sabem o que é que eu fiz? N-a-d-a. Absolutamente nada. Fiquei em casa, cozinhei, vi 3 episódios seguidos de uma série e fui para a cama ler até o livro me cair em cima da cara. E soube-me tão bem!

Posto isto, tenho pensado muito neste assunto. E sinto que, volvidos 25 dias do início do novo ano, encontrei o meu objectivo para 2018: abrandar, parar, respirar. Não necessariamente por esta ordem, mas talvez haja uma lógica em seguir esta ordem. Sinto que é aquilo de que preciso neste momento. Tenho lido algumas coisas sobre isto de viver em modo lento, descobri blogues novos que me inspiram, e já delineei um plano mental para conseguir alguma calma na minha vida. Já pus em prática algumas coisas, outras ainda estão para vir, outras serão um work in progress permanente. Gostaria de falar sobre elas num outro post, para não vos maçar que este já vai longo. Espero ter tempo, ia agora dizer. Oh, mas é claro que irei ter tempo. Afinal, o ano ainda agora começou e eu (já) não tenho pressa.

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