Modas

Os coletes de malha voltaram a estar na moda. Há uns anos, quando ainda não estavam na moda, mas eu tinha começado a apreciar malhas, especialmente as feitas à mão, comprei dois coletes que devo ter usado duas vezes, se tanto, pois sempre que os punha, sentia-me uma geek fora de moda, mas sem o charme dos geeks fora de moda. Agora que os coletes voltaram a estar na moda, fui buscá-los e vesti-os, para ver que tal. Achei que me ficavam a matar. Depois pensei por breves momentos no que teria mudado em mim para os coletes me passarem a ter ficado bem e cheguei à conclusão que não foi nada físico que mudou em mim, mas apenas as referências que fui tendo. Ou seja, a moda tem uma influência incrível em nós, porque mesmo que não sejamos daquelas pessoas que estão sempre a par das últimas tendências, e que as seguem, como eu não sou, é mais fácil gostarmos de nos vermos vestidos de certa forma se gostarmos de ver outras pessoas vestidas dessa forma. Logo, se não vemos ninguém vestido dessa forma, sentimo-nos desfasados e desenquadrados. É claro que nem toda a gente funciona assim. Mas uma influenciável como eu, que nunca poderá vir a ser uma influenciadora, ficou contente por, finalmente, gostar de me ver nos coletes e lhes poder dar uso este ano. Então, meti-os na máquina, no programa de lãs, porque cheiravam a mofo.

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Encontros de família

Os encontros de família sempre me causaram alguma ansiedade, mesmo quando ainda era só a minha família. Havia sempre comentários sobre a minha roupa, ou o meu cabelo, ou o meu peso. Havia sempre quem puxava uma conversa que alguém não queria ter, havia sempre um comentário que ficava no ar, havia sempre demasiada comida e a obrigação de a consumir em sinal de boa educação. Eu era a mais nova e sofria por isso: era nova demais para participar em certas conversas, mas já não tão nova que pudesse fingir que não as entendia.

Hoje em dia, os encontros familiares continuam a causar-me alguma ansiedade, mas cada vez menos. Já não sou a mais nova, nem me destaco pelas roupas ou pelo peso. Já consigo relaxar à mesa mesmo sem saber quem vai calhar ao meu lado. Já ninguém repara se como, ou se gosto, ou se repito, e eu às vezes não como assim muito porque me distraio com a conversa. Tento disfarçar o que bebo. Às vezes, a conversa até é boa e nem me lembro de que, no ano anterior, não estava ali, no mesmo encontro anual, mas sim em casa, cheia de dores, a tentar distrair-me com um livro que não me ficou na memória.

No meio da conversa, que foi sempre boa, reparei, claro, no vinho que foi servido. E lembrei-me de, ontem, quando andava à procura de um vinho para abrir, ter visto uma garrafa igual cá em casa. Tratamo-nos bem.

Está aquele tempo entre o chove ou não chove. Por via das dúvidas, quando chegar a casa vou regar.

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O excesso compensa a falta

Às vezes, apetecia-me fumar. Pegar num cigarro e num copo de vinho e ir para o quintal descomprimir da semana. Não é do fumar em si de que tenho saudades. É da escapatória que gosto. De ter uma desculpa para escapar a um frete ou para adiar arrumar a cozinha. De ter aquele momento no escuro da varanda antes de baixar o pano da semana que passou. Hoje, é um desses dias em que me apetecia pegar num cigarro, abrir uma garrafa de vinho e sentar-me sem pensar em nada, a desenhar bolas de fumo no ar.

Faz hoje um ano que. Na verdade, começa a fazer hoje um ano que. Foram quatro dias de uma espécie de trabalho de parto a solo, portanto vai de hoje a terça. Um casamento cigano. Mas sem alegria. Tenho de definir uma data na minha cabeça, dizer para mim, foi naquele dia, não foi de xis a xis, que isso eu não aguento. Nem eu nem a garrafeira cá de casa.

Nos meses que se seguiram, bebi muito vinho. Houve uma altura em que bebia todos os dias e, às vezes, era uma garrafa só para mim. Foi uma fase, normal, acho, mas tiveram de me dizer, Olha, estás a beber muito. Não que eu não soubesse. Mas se ninguém notasse, era porque ainda não fazia mal. Se fumasse, também iria fumar muito. Tem de haver excesso para compensar a falta.

Quando estava a escrever sobre a minha perda, fui reler os textos que escrevi na altura e não publiquei. Num deles, encontrei uma referência à minha filha mais nova do último dia em que fui às urgências (foram dois). Tivemos de levar as miúdas connosco, porque era demasiado cedo para pedir a quem quer que fosse que ficasse com elas. Assim como assim, eu tinha de entrar sozinha no hospital por causa da covid. Então, fomos todos em romaria e eles ficaram no carro à minha espera. Uns dias depois, a Alice, a quem dissemos apenas que a mamã estava com uma dor de barriga muito forte, contar-me-ia uns dias depois que, enquanto esperava por mim, fez toda a espécie de conjeturas sobre a razão que me teria levado às urgências tão cedo a um sábado. Quando lhe perguntei se me podia dizer exatamente o que é que tinha pensado, respondeu: “Por exemplo, pensei que tinhas ficado surda de repente, ou então que tinhas começado a ser alérgica ao sushi”.

O dia em que deixarmos de ter motivos para rir, também não há vinho que nos valha.

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Mercúrio

Está tudo a acontecer ao mesmo tempo. Como o presente está a ser demasiado efusivo a berrar-me aos ouvidos com megafones, estive a noite passada acordada entre a uma e as cinco da manhã a rever o passado e a antecipar o futuro. O dia, claro está, não foi fácil. O que não impediu a roda de continuar a girar.

Raio do mercúrio retrógrado que nunca mais sai do sítio. Ainda começo mesmo a acreditar que o que não se explica explicado está.

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