Isto não é uma promessa

 

Não foi uma resolução de ano novo, mas no fim do ano passado voltei a escrever no meu diário. Acho que fiquei inspirada por ter lido mais um volume diarístico da Ivone Mendes da Silva. Depois disso, li o diário da Heidi Julavists, que é desconhecida por cá e cujo livro comprei num assomo impulsivo, porque gostei da capa e das críticas no Goodreads. Às vezes, gosto de me deixar surpreender assim e a verdade é que mais facilmente apanho banhadas com livros que me recomendam os amigos, do que quando me deixo levar por um instinto literário inexplicável. De modos que li a Julavists e descobri outra forma de escrever um diário que é não escrever sobre o dia em si, mas sobre lembranças a que algum acontecimento não mencionado desse dia conduziu. Ou seja, apesar de começar sempre os seus registo com «Hoje, eu…», ela raramente descreve os acontecimentos desse dia, mas sim coisas não relacionadas que aconteceram noutra altura ou sucessões de eventos que levaram a determinado desfecho. Gosto disso, permite algum distanciamento ao leitor. Porque aposto que ela reserva os pensamentos mais íntimos e a rotina familiar para diários caseiros que nunca serão publicados.

Fazendo um paralelo comigo, não há muita coisa que eu escrevo no meu diário que possa transpor para o blogue. Por outro lado, não escrevo nele tudo o que me passa pela cabeça durante o dia, todas as lembranças, todos os acontecimentos menores, planos mais mundanos ou coisas interessantes que leio.

Isto quase me dá vontade de voltar aqui de modo mais regular.

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Que nem cogumelos

Sempre que espreito o LinkedIn, luto com um sentimento de inadequação e de estar sempre a correr atrás da última carruagem. Os outros tradutores e revisores parecem sempre mais produtivos e eficientes. Todos os dias, têm um rol de obras revistas ou traduzidas para apresentar. Pergunto-me como o fazem. Será que passam os dias e noites a trabalhar, para conseguirem apresentar produção tão invejável? Ou será que foi tudo obra do acaso e terão, como eu, obras há muito acabadas que foram sendo proteladas pelas editoras e viram, não como eu, de repente, a luz do dia — e em catadupa?

Eu, que até cumpro um número bastante respeitável de palavras por dia, vejo-me há largos meses sem obras para apresentar. Tenho seis no prelo, como se diz, que muitas vezes é um eufemismo para encobrir a falta de tempo dos editores ou de dinheiro das editoras, para as escolhas imprudentes que fizeram em tempos de vacas magras ou para o surgimento de nomes mais sonantes que se sobrepuseram. Talvez um dia venham a ser publicadas, e quem sabe também em catadupa, e eu possa incluí-las no meu modesto portefólio e criar nos outros a mesma sensação de que, das minhas mãos, as traduções saem que nem cogumelos.

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Manto de invisibilidade

Tenho tido alguns desgostos de amizade nos últimos meses. Pessoas de quem me considerava amiga que, de um momento para o outro, sem que nada o fizesse prever, deixaram de me considerar sua amiga. Colegas que me levavam no coração, me recomendavam e convidavam para tudo e mais alguma coisa e, de repente, foi um ar que se lhes deu. Já fiz e refiz na minha cabeça diálogos existentes e imaginados, já pensei no que posso ter feito, ou deixado de fazer, que os ofendesse, já avaliei o grau de plausibilidade de várias hipóteses que me surgiram, nestas minhas reflexões, sobre o que me levou a ser persona non grata, mas não consigo arranjar uma explicação. Não encontro ação em mim, praticada ou intentada, que pudesse ter posto em risco a nossa suposta amizade e não consigo apontar na linha cronológica uma data para um acontecimento a partir da qual as coisas tivessem mudado. Sinto-me uma idiota por não perceber aquilo que, para os outros, parece óbvio e, ao mesmo tempo, estou naturalmente magoada.

Quis o acaso que, por volta da mesma altura, começasse também a ser ignorada no restaurante aonde costumo ir buscar comida para o meu almoço, nos dias em que me falta tempo ou paciência para preparar a marmita ou, simplesmente, quando o prato do dia me agrada. Aconteceu mais vezes do que o desejável para quem paga e espera ser bem servido – ou simplesmente servido, como se verifica neste caso – esquecerem-se do meu pedido. Vou lá ou telefono e peço determinado prato para daí a uma hora e, quando o vou buscar, não encontram o meu pedido. Por vezes, conseguem convencer-me a conformar-me com o outro prato do menu, aquele que eu originalmente não escolhi por algum motivo que, para mim, é mais do que pertinente (como não gostar ou fazer-me mal), mas também já houve uma vez em que já não tinham nada para me servir. Passa uma pessoa uma hora a pensar no que vai comer ao almoço, descansadinha da vida porque tem a refeição assegurada e acaba por sair de lá com as mãos a abanar. Não me parece muito fixe que isto aconteça mais do que uma vez a um cliente regular, ou estarei a ser muito exigente?

Não falei com outros clientes e, portanto, não sei se o mesmo tem acontecido a outras pessoas e se resume, portanto, à terrível falta de organização do pessoal. Mas, acrescendo ao exposto nas linhas acima, não encontro outra justificação para que isto me ande a acontecer que não seja a de me ter tornado invisível. Ou talvez o tenha sido sempre. Terei certamente uma capa natural de invisibilidade à minha volta que me torna na pessoa que, estando lá, não está, nem faz falta.

Em retrospetiva, pensando na pessoa que sempre fui, isto faz todo o sentido. Sempre odiei ser o centro das atenções, não danço em público porque sou demasiado consciente do meu corpo, sinto vergonha alheia em demasiadas circunstâncias, prefiro grupos mais pequenos, odeio estar em multidão, sucede amiúde que não me oiçam à mesa de um jantar de grupo, estar sozinha não é coisa que me incomode, nem que me assuste, e deixei de fazer festas de anos porque tenho medo que as pessoas se esqueçam de vir. Passo facilmente despercebida e, se isso no meu trabalho é uma mais-valia, na vida pessoal é uma bela merda.

Devia ter ido para o clube de teatro da escola quando tive oportunidade.

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Inventário de Janeiro

Janeiro lá desfiou o seu novelo interminável de tempo e chegou ao fim. Motivada pelos diários que ando a ler a retomar a minha própria rotina diarística, redigi uma lista de todas as coisas que fiz no primeiro mês do ano. Contei as palavras que traduzi e as palavras que revi, e percebi que foi um mês atipicamente rentável e produtivo. Li 3 livros, fiz 21 dias de yoga (dos 30 dias da Adriene, é a minha melhor média de sempre), 7 dias de natação e o dobro dos dias de treino, retomei a meditação, registei todos os meus gastos e percebi onde tenho de cortar, fiz uma colonoscopia (quem já fez sabe a preparação que isto implica…), fui ao cinema uma vez, passei uma tarde nas compras com a mais velha, levei o carro à inspeção, vi umas quantas séries, filmes e documentários e escrevi no diário quase todos os dias. É claro que o melhor de tudo que me aconteceu este mês foi mesmo o regresso da Olívia, that goes without saying. Ela continua bem de saúde, sempre atrás de mim e do radiador.

Ao fazer esta lista, percebi também que, este ano, não senti aquele desespero habitual por Janeiro se arrastar no tempo sem graça nem utilidade que não seja a de estabelecer a ponte para Fevereiro. O mês correu-me de feição. Sinto-me como se me tivessem feito uma lavagem à alma, ando animada, cheia de energia e com saúde. Talvez seja só como diz a Heidi Julavits em The Folded Clock, «health is the pause between afflictions”, mas eu prefiro apostar nos meus grandes planos para Fevereiro.

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A magia do novo ano

A magia do Natal já era, os desejos de ano novo é que estão a dar.

Na passagem de ano, a anfitriã distribuiu uns quantos Post-its onde nos pediu que escrevêssemos os desejos que queríamos ver concretizados em 2023. Deviam ser 12 desejos, um por cada passa, mas como eu não gosto de passas, achei que podia fazer as coisas à minha maneira e usei um só papelinho amarelo, com um único desejo para o novo ano.

A coisa passou-se, o ano começou e, nos primeiros três dias, foi aquele pesado arrancar sem energia nem esperança.

Até que, na noite do quarto dia, estava eu de volta da roupa, já depois de deitar as miúdas, quando oiço miar. Aquele miar inconfundível da… nossa gata! Eu nem queria acreditar. Atirei ao ar tudo o que tinha nas mãos e nos pés (as socas estavam a atrapalhar) e corri a abrir a portada da cozinha. Era mesmo ela que, 12 dias depois (14, se contarmos os dias em que desapareceu e reapareceu), a Olívia regressa a casa pelas próprias patinhas, miando desalmadamente e esganada de fome e sede.

Ainda só houve duas situações em que as minhas filhas me viram chorar e foi sempre por causa dos nossos gatos: quando um morre ou desaparece e quando a Olívia apareceu. Doze dias depois… Caramba, já estava a perder a esperança.

Os dias seguintes têm sido passados de roda dela, a fazer-lhe companhia, porque não suporta estar sozinha (o que me leva a crer que ficou mesmo fechada em qualquer sítio, sozinha, durante todo este tempo) e a dar-lhe estabilidade. Acho-a um bocadinho abatida, mas tem muito apetite e não se cansa de festas. Se pensarmos bem, é bastante provável que ela esteja a sofrer as consequências da descarga de adrenalina que deve ter tido e que esteja a acusar algum stress pós-traumático.

O que eu dava para saber onde esteve metida este tempo todo… Ela bem nos contou, quando chegou, miando sem parar enquanto entrava em todas as divisões da casa, como que para se certificar de que ainda estava tudo no sítio certo. Ela bem nos contou, nós é que não a percebemos…

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