Diário do isolamento #3

São cinco da manhã do dia 3 de Abril e não consigo dormir.

Faz hoje precisamente três semanas desde que a nossa família entrou em isolamento voluntário, dias antes de as escolas fecharem, antes de o governo declarar estado de emergência.

Comecei este diário com um tom divertido e brincalhão, mas deixei de o escrever porque deixei de conseguir ver o lado divertido da situação. Lá fora, é o caos. Cá dentro, reina outro caos diferente. Primeiro, foi a minha dificuldade em aceitar a nova rotina, a falta de tempo para mim, a falta de tempo no geral a tentar conciliar trabalho com o ensino doméstico, com a lida da casa, com as crianças sempre à minha volta. Quando me apercebi de que a quarentena é capaz de demorar mais do que estava à espera, desabei. Achei que não ia aguentar; pus-me em causa, como mãe, como pessoa. Irritavam-me os optimistas que admoestam para ver o que realmente importa; irritavam-me os sonhadores que acham que é a natureza a dar-nos uma lição; irritavam-me os anarquistas que vêm na necessidade de isolamento uma forma de repressão.

Mas depois comecei com tosse e tudo o resto passou para segundo plano. A par da tosse, veio um aperto no peito, igual ao aperto que sentia cá dentro quando, em tempos idos, fazia uma noitada daquelas e fumava um maço numa só noite. Só que agora sem noitada, nem cigarros. Na terça, telefonei para a Saúde 24 e mandaram-me fazer o teste à Covid-19.

Chorei pela segunda vez neste confinamento. Tive medo. Desde terça até hoje, tem sido um turbilhão. Se, por um lado, a dor no peito passou (ficou uma tosse leve que teria passado despercebida não fosse a situação actual) e eu fiquei mais calma, por outro lado, toda a espera e incerteza criam bastante ansiedade. Demorou um dia e meio até receber um SMS com a requisição para o teste. Avisaram-me que demoraria, mas nunca pensei que, numa doença que se quer restringida, o processo fosse tão demorado. Depois, foi marcar o teste. Em certos centros, só têm vaga para depois da Páscoa e tu pensas… mas até lá estou curada, ou então já morri… Por um golpe de sorte, consegui marcar para hoje, sexta. Vou sair, pela primeira vez, de máscara e luvas, para uma Lisboa vazia, em que há operações stop para saber de onde vimos, para onde vamos e porquê. Tempos estranhos, para dizer pouco.

Todos os dias, recebo um telefonema de um médico no âmbito da monitorização da doença. Perguntam-me como me sinto, se já fiz o teste, se sei como me proteger a mim e aos que moram comigo. Disseram-me que não podia abraçar as minhas filhas ou ler-lhes a história na cama. Perguntaram-me se podia ter uma casa de banho só para mim, ou fazer as refeições à parte. Implementei o que podia. Partilho agora a casa de banho com a gata, mas continuo a partilhar a cama com o marido. Sabemos que é na saúde e na doença, mesmo que nunca tenhamos tido um padre para no-lo dizer. À minha filha mais nova custa-lhe não me poder abraçar e anda sempre de roda de mim. Abraça-me nas pernas, digo-lhe, e ela baixa-se e envolve-me a barriga das pernas com os seus bracinhos rechonchudos. A mais velha foge de mim, tem medo que a contagie, mas às vezes esquece-se, e o que lhe custa mais é agora nem poder ir para o jardim (partilhamos o espaço exterior com mais família e queremos prevenir aquilo que está ao nosso alcance).

Os resultados do teste demoram entre 24 a 72 horas, portanto não conto saber antes de segunda. Se me perguntarem, sinto-me bem. Tirando a tosse, que é leve, não tenho outros sintomas; a dor no peito passou, felizmente, mas não é caso para baixar a guarda. Segundo me disseram ao telefone, tem sido comum que pessoas infectadas, perante um quadro inicial de sintomas leves, vejam a situação agravar-se subitamente após 6 dias.

De repente, deixei de me preocupar com o resto – comecei a ver o que é realmente importante, sim, mas sem romantismos de merda. Já não há horários de estudo nem obrigações de nada. As miúdas fazem basicamente o que querem, desde que seja dentro de portas. No outro dia, fizemos todos limpeza e ficou tudo muito mal feito, mas eu não me importei. A sala está em estado de sítio com as minhas coisas da costura espalhadas por todo o lado, mas nem o caos visual me tem incomodado. Trabalho o mínimo. Tenho escrito e costurado. Estou à espera.

Muito provavelmente não é nada. Não saio de casa, fui uma vez ao supermercado; duas vezes ao meu escritório onde não trabalha mais ninguém. Só vou ao lixo, e de luvas. O Tiago é quem vai às compras, duas vezes por semana, e temos todos os cuidados. Ainda assim, é sempre possível trazer o vírus para casa; basta uma vez, como diz o Rodrigo Guedes de Carvalho. Mas, seja qual for o resultado, de repente a perspectiva mudou. Seja qual for o desfecho disto, a minha forma de encarar tudo isto já mudou. Tenho pensado muito no que as monjas budistas de um retiro que fiz há dois anos falavam sobre a impermanência da vida. Nunca que me fez tanto sentido viver no presente. Todos os nossos planos foram pelo cano e não fazemos ideia de como vai ser daqui para a frente. Mas estamos vivos e, neste momento, só o que me importa é estar bem.

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Diário do isolamento #2

Dia 3

É domingo e ainda não nos caiu a ficha. Está sol, passamos a manhã no quintal e, ao almoço, fazemos um churrasco. Passamos a tarde a comer e a beber. Nada de novo, portanto.

Dia 4

Achei que, se me levantasse à hora a que me costumava levantar antes do isolamento, conseguiria trabalhar, pelo menos, duas horas sem interrupções. Se, em dias de escola, é um castigo para acordar as miúdas, especialmente a Alice, certamente agora vão dormir até às 9, certo?

Errado. Errado. Errado. Inês acordou às 7:20. Trabalhei vinte minutos e comecei o dia frustrada. Amanhã acordo mais cedo. De certeza que vai resultar!

Como sempre quando fico frustrada, ponho-me a fazer arrumações. Destralhámos os livros e as roupas delas e eu mudei completamente a disposição do quarto. No final do dia, estou tão cansada que não sei se amanhã consigo acordar cedo.


Dia 5

Não consegui acordar antes das 7, mas… progressos! Consegui trabalhar mais 3 minutos do que no dia anterior! Desta vez, foi a Alice que acordou cedo – a Alice que nunca conseguimos tirar da cama antes das 8 num dia qualquer. Começo a pensar que elas conspiraram isto tudo: um dia, acordo eu, no outro dia, acordas tu. Só pode.

Recebi um telefonema. Cancelaram-me a tradução de um livro que andava a traduzir há um mês. Pagam-me o que já fiz, mas agora fica tudo em standby. Foi um balde de água fria. Será que vão começar a cancelar outros trabalhos? Tenho mesmo de despachar o que tenho em mãos para entregar antes que se lembrem de cancelar.

Como parece que anda aí tudo a escrever “Vamos ficar todos bem” por cima de arco-íris pintados por mãos pequeninas, resolvi fazer isso com elas. Não correu lá muito bem. 1) Descobrimos que a maior parte da tinta estava seca e agora não dá para ir comprar mais. 2) Eu disse-lhes para porem outra roupa, não quiseram, prometeram-me que não se iam sujar, sujaram-se. 3) O desenho da Inês ficou esquisito e ela teve uma crise existencial.

Acho que não tenho paciência para estas coisas, ainda assim, a seguir resolvi fazer bolachas. Não correu mal, mas elas não gostaram das bolachas. Não percebo. O que há para não gostar de bolachas paleo super saudáveis sem açúcar??

Antes de deitar, anunciei-lhes uma nova regra: ninguém sai do quarto antes das 8 da manhã. Se acordarem, ficam na cama ou no quarto, a ler, a conversar, a fazer o pino, desde que me deixem trabalhar. Ameacei que as obrigava a comer as bolachas paleo se não cumprissem, por isso acho que vai resultar.

Dia 6

Acordei às 6:30 para trabalhar. Ouvi um reboliço no quarto, mas deixaram-me trabalhar até à hora combinada. Fiquei tão feliz como se me tivesse saído a raspadinha e fui, durante 3 horas, uma mãe exemplar. Fiz-lhes o pequeno-almoço, acompanhei-as no estudo, a seguir fomos fazer ginástica e yoga para crianças. Deixei-as ver televisão enquanto eu fiz a minha ginástica. Ah, assim sim! Que manhã produtiva!

À tarde também consegui trabalhar duas horas. Como hoje à noite o Presidente é capaz de decretar o estado de emergência e não sabemos como vai ser a nossa vida amanhã, levámos as miúdas a dar um passeio para o meio do mato. Cruzámo-nos com algumas pessoas que tiveram a mesma ideia que nós, mas fugimos para o outro lado da estrada como o diabo da cruz. Tempos estranhos estes.

Dia 7

Estado de emergência e dia do pai.

A rotina da manhã repetiu-se (aquela parte de acordar cedo e conseguir trabalhar até às 8), mas elas ainda não sabem que não há mais bolachas paleo.

Ando um bocado cansada com isto, pois ando a dormir menos quando podia dormir mais, trabalho menos, tenho medo que me cancelem mais trabalhos, já não recebo muitos pedidos e começo a fazer contas à vida.

Como me esqueci de fazer com elas qualquer coisa para o dia do pai, rabiscaram um desenho e deram-no ao pai como se fosse um tesouro.

Estudei com elas, mas hoje não quiseram fazer ginástica. Preferiram jogar ao Ticket to Ride que o pai mandou vir. Fiz um esforço hercúleo para ninguém perceber que me apetecia tanto jogar como ir para a fila do Continente. O pai percebeu, o que me valeram uns bons olhares de “põe-te fina”.

As miúdas já aprenderam que, quando o Rodrigo Guedes de Carvalho está a falar, elas têm de estar caladas. Foi difícil chegarmos a este ponto. Desde que isto começou e que nós passámos a ligar a televisão à hora do jantar, é uma algazarra pegada. Elas a falarem por cima da televisão e nós a falar por cima delas: Deixem ouvir! Coitadas. Isto interessa-lhes tanto como a mim me interessa falar de futebol, mas passamos o dia com elas, a fazer coisas com elas, a entretê-las e tentar que o ambiente seja bom, enquanto nos continuamos a preocupar com as nossas coisas de adultos como o vírus e os trabalhos cancelados e a melhor hora para ir comprar frescos e quantas horas preciso de trabalhar e como as vou espalhar durante o dia, por isso, o mínimo que elas podem fazer é estarem caladas durante o jornal da noite!

Telefonei ao meu pai. Está cheio de medo de sair à rua. Mas teve de sair, porque só tinham dois rolos de papel higiénico em casa. Dois rolos! uns com tanto e outros com tão pouco! É claro que, quando na semana passada o avisei para reforçar a despensa, não me ligou, achou que eu exagerava. Chega uma altura na vida em que somos nós a dizer aos nossos pais o que fazer e eles a não nos ligarem nenhuma. Acho que é uma forma de o universo ironizar connosco. Dei-lhe mais umas quantas recomendações. Tu tem cuidado. Tu mantém as distâncias. Tu isto. Tu aquilo. E, já agora, feliz dia do pai!

Amanhã diz que chove.

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Diário do isolamento #1

Dia 1

As escolas só fecham a partir de segunda-feira, mas nós decidimos que as miúdas já haviam de ficar hoje em casa. Eu fui para o escritório, mas não me cruzo com ninguém. Trabalho sozinha, tenho casa de banho só para mim, entro e saio do carro sem contactar com ninguém. Vim almoçar a casa e, em vez de ver metade de um episódio da minha série actual enquanto almoço no sofá, como de costume, tive de almoçar à mesa em família, o que, para uma sexta-feira, foi um bocado esquisito. As miúdas reclamaram a minha presença, o que me recordou que isto de continuar a trabalhar com elas em casa é capaz de ter que se lhe diga.

Dia 2
Eu tinha uma lista mental das coisas para as quais nunca tenho tempo e que agora iam mesmo acontecer. A maior parte inclui a participação das miúdas, porque a) preciso de ocupar-lhes o tempo e b) isto não é nenhum hotel, e são coisas como lavar e aspirar o carro, pintar a estante da casa de banho, destralhar os brinquedos e ajudar-me a preparar a horta na varanda. Comecei pela pintura da estante porque sabia que se iam entusiasmar. Eu é que perdi o entusiasmo quando vi que aquilo estava a ficar tal mal pintado que ia precisar do dobro das demãos para disfarçar. Às tantas, chateei-me e mandei-as embora e fiquei a matutar nas minhas (in)capacidades pedagógicas.

Ao segundo dia, começámos a beber. Não como sintoma de desespero, bem pelo contrário, como uma espécie de celebração, porque:
1. Ainda estamos todos saudáveis.
2. Temos um quintal.
3. Estive a eliminar todos os eventos da minha agenda até ao fim do mês e passei um dia como há muito tempo queria: sem almoços marcados, sem compromissos, sem obrigações, sem nada.

As miúdas estão bem. Contentes por estar connosco, acho. Olívia, a gata, também. Até nos trouxe um lagarto e um rato de presente. Se isto continua assim, acho que vou precisar de mais vinho.

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Coisas sérias

Foi precisa uma coisa séria para me trazer de volta ao blog.

A minha vida está cheia de coisas sérias, que não me tomem por leviana. Mas as coisas sérias da minha vida têm a vantagem de poderem ser, melhor ou pior, controladas por mim. Dependem de mim, fui eu que as desejei ou que, mesmo não desejando, causei. O que não quis ou causei foi o coronavírus que pôs a Europa, o mundo, em polvorosa. E o pior é que não consigo controlar nada disto. Fora o isolamento voluntário a que já nos submetemos em família e as medidas de higiene sempre que os adultos tiverem mesmo de sair de casa, resta-nos esperar: esperar que passe e esperar que passe ao lado, que não nos afecte directamente, a nós ou a nenhum dos nossos, pais, sogros, tios, primos, amigos, vizinhos.

Os últimos dias foram de grande angústia. A cada hora havia novidades. A cada hora as medidas de contingência aumentavam. A cada hora estávamos cada vez mais cientes da nossa fragilidade. Quase que chorei por ver que as minhas filhas têm de viver isto. E isto assusta-me. Não me assusta ter de ficar em casa e tentar não puxar os cabelos a ninguém ao fim de três dias. Não me assusta não poder sair, ir ao ginásio, ir beber um copo, ir ao parque com as miúdas. O que me assusta é a fragilidade humana.

Isto vai passar, é verdade, não é uma bomba atómica, não é uma guerra mundial, não ficámos desalojados nem somos obrigados a atravessar o Mediterrâneo num barco sobrelotado com as nossas filhas. Penso nisso, penso nelas, tão seguras no seu “isolamento voluntário”, com um quarto cheio de brinquedos para que não se aborreçam, com a despensa abastecida com todo o tipo de comida para que nunca passem fome, com uma lista de actividades para as próximas semanas para que se façam umas mulherzinhas. Penso em nós, em termos globais, como andamos sempre tão à vontadinha, a achar que nunca é connosco, que nunca nada nos afecta, que não é preciso repensar a forma como fazemos lixo porque a destruição do planeta ainda é uma miragem, que mais vale ir à praia do que ir votar porque, de qualquer maneira, é tudo uma cambada, que não precisamos de ser cívicos ou viver bem em comunidade, porque só temos um umbigo e é nosso.

Isto – o que estamos a viver agora – (ainda) não é nada. Não é nada em comparação com a Peste Negra ou com o que se deve viver nos campos de refugiados na Grécia. Não é como se vivêssemos na iminência de os Nazis nos virem arrancar de nossa casa para nos mandarem para um campo de concentração ou nos matarem ali mesmo. Não é nada disso. É só ficar em casa durante algumas semanas e seguir o mínimo dos mínimos. Resguardarmo-nos. Proteger os nossos dos outros. Proteger os outros dos nossos. É só isto. Mas pode ser que seja o que fazia falta para nos pôr a repensar a nossa forma de viver aqui, como um todo. Porque a mim já está a dar que pensar. E ainda agora começou.

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O meu ano vai bem

Estou sempre a encontrar pessoas conhecidas em Sesimbra. É impossível ir almoçar a qualquer lado com ideias de ler um livro enquanto almoço sossegada. Há sempre alguém que frequenta o mesmo restaurante que aparece a meio do almoço, que convido a sentar-se na minha mesa, com quem troco dois dedos de conversa. Nos dias em que, como hoje, até consigo ter um almoço sem companhia, encontro pelo caminho várias pessoas que conheço daqui e dali, algumas só de vista, outras com direito a cumprimento. Vinha a pensar nisto na vinda do almoço, quando passo por uma esplanada frequentada habitualmente por homens mais velhos com uma mão cheia de tempo e a outra mão vazia de pontas de cigarros, que se sentam virados para a estrada a discutir uns com os outros sem realmente se olharem. Chamou-me a atenção o facto de haver uma mesa cá fora posta para almoço, com dois homens de sobretudo e óculos de sol a regarem o peixe com azeite. Olhei para eles com mais atenção. Só podiam ser estrangeiros. Só os estrangeiros têm o prazer que falta aos portugueses de usarem as esplanadas em dias de sol de inverno, nós que temos sempre tanto frio num país tão quente. Estava eu nisto, dizia eu, quando, mesmo ao passar rente à mesa, um dos estrangeiros vira a cara e o reconheço. No balão por cima da minha cabeça surgiram rapidamente vários OMG! OMG!! OMG!!! assim que percebi que era o Tom Barman, o vocalista da banda belga dEUS que venerei no início da minha vida adulta. Quase que hesitei. Afinal fomos apresentados há uns dois anos, num final de tarde de verão em Sesimbra. Mas é claro que ele não se iria lembrar de mim, Hey, I’m the girl with the beautiful name, remember me?, tenho lá em casa um guardanapo de papel para provar que nos conhecemos. Duh. Talvez se das minhas resoluções para 2020 tivessem feito parte audácia, ousadia ou, simplesmente, esforços para perder a timidez, teria falado com ele. Como o ano já começou há oito dias e tudo permanece igual, passei por ele como se nada fosse e atravessei a estrada a fingir que não ia com o coração aos pulos.

O meu ano vai bem, e o vosso?

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