Flexibilidade em tempos de pandemia

Há um ano, no dia 1 de Junho de 2019, dei uma palestra na Translatelisbon sobre como encontrar o equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional quando se é freelancer e se trabalha em casa. Entre outras coisas, falei sobre a necessidade de, quando tal é possível, criar uma separação física entre a área de trabalho e a área de lazer ou familiar, e a primeira de oito sugestões que dei para encontrar equilíbrio foi definir um horário de trabalho. Reforcei que não era regra de ouro e que o que era bom para mim podia não ser bom para outra pessoa, mas expliquei que uma das vantagens de ter um horário definido quando não se tem horário é conseguir, também, definir um horário para o lazer e não sentir que estamos sempre a trabalhar (ou, por outro lado, que estamos sempre a procrastinar).

Dez meses depois da minha apresentação (que correu muito melhor do que pensava e encheu a sala com as pessoas certas), chega uma pandemia que me dá uma estalada em cada face e me faz engolir cada palavra proferida naquela manhã quente de Junho. Fomos todos remetidos para o teletrabalho, e se pensam que quem já trabalhava em casa não sentiu diferença, estão muito enganados. É que uma coisa é trabalhar em casa com a casa vazia (crianças na escola, parceiro no trabalho dele), com horários estipulados e aquela rotina com que sabemos que podemos contar na hora de aceitar ou recusar mais trabalho. Outra coisa completamente diferente é trabalhar em casa com TODA a gente em casa; e como se uma casa cheia não bastasse, essas pessoas que passaram a estar em casa contigo também têm de trabalhar e ter aulas e isso, muito provavelmente, ocorre no mesmo espaço do que tu (ou então, ocupam/ocupas a mesa das refeições, abalando os alicerces do ponto três da minha apresentação sobre a separação física entre o espaço de trabalho e o espaço pessoal).

Não vale a pena dizer que tem sido uma luta. Todos nós sentimos ou ainda andamos a sentir na pele as dificuldades inerentes ao teletrabalho e à telescola e a uma vivência 24/7 em contexto de confinamento. Sou apenas mais uma pessoa a queixar-me. E, como muita gente, também eu tive de fazer ajustes e concessões. Ser flexível foi crucial para isso. Felizmente, o meu trabalho permite-me toda a flexibilidade: trabalho com prazos, não com horários; logo, é pouco importante se sigo um determinado horário desde que consiga cumprir os prazos.

Ora, isto é um pau de dois bicos. Se, por um lado, tive a flexibilidade de poder trabalhar em qualquer horário, por outro lado, deixei de ter horário para trabalhar. Rapidamente comecei a sentir que o trabalho preenchia todos os meus bocadinhos livres. Rapidamente me comecei a sentir uma fraude: eu, que tanto defendera a necessidade de nós, tradutores e demais freelancers, nos precavermos contra possíveis abusos por parte de clientes menos atenciosos, educando os clientes para o facto de precisarmos tanto de fins de semana e tempos livres como eles, passei, de um momento para o outro, a entregar trabalhos a horas loucas, a responder a e-mails ao sábado à tarde, a correr para o computador sempre que algum aparelho ficava livre, a consultar o e-mail no telemóvel durante o almoço. Deixei de ter fins de semana ou feriados; os dias passarem a ser todos iguais, com a única diferença de não receber e-mails ao domingo.

Três meses volvidos, já todos nos habituámos mais ou menos a isto e nos ajustámos aos novos horários, mas eu continuo a sentir muita falta de ter um horário definido (e de trabalhar na santa paz do senhor, confesso). Por outro lado, também admito que é bastante tranquilizador ter uma profissão que me permite acordar às sete da manhã enquanto todos dormem e despachar o mais urgente para depois poder passar o resto da manhã na praia com as miúdas; ou pegar no portátil e partir rumo a terras algarvias para mudar de ares e fingir que este ano até vamos poder fazer férias. Não estou de férias, claro. Mas trabalhar na varanda de chinelo no pé dá uma enorme sensação de leveza e, de repente, não me sinto tanto aquela fraude.

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40

Faz hoje exactamente um mês que fiz 40 anos. Achei que a data merecia um post introspectivo sobre os novos 30; sobre o que conquistei até hoje ou o que ainda quero fazer; sobre as marcas da idade. Mas como não me chegou a inspiração, fui adiando até me esquecer. (Talvez seja o primeiro sinal de que chegámos aos 40, começarmo-nos a esquecer.) Mas entretanto, esta semana, ao ler O Caminho Imperfeito, do José Luís Peixoto, diz ele a certa altura: Tenho quarenta e dois anos. Quando olho para esta idade, parece-me imensa. E eu pensei, é isto, afinal era tão simples.

Tenho quarenta anos. Quando olho para esta idade, parece-me imensa. Cabe tanta coisa aqui, e ainda há espaço para tanto mais. Mentiria se dissesse que não me custa a crer que tenho quarenta. Custa-me a crer porque não o sinto. Quando era miúda achava que aos 40 já estaria acabada, finita, destinada a viver os dias sempre da mesma maneira, porque o que tinha conseguido até então seria definitivo; depois dos 40, achava eu, já não nos restava mais nada senão ficar a ver o mundo passar. Estava enganada, claro. Aos 40 sinto-me mais leve do que nunca; o peso do mundo foi deixando de estar sobre os meus ombros. É a ternura dos 40.

Quando olho para o espelho, vejo cada vez mais a minha mãe. Na boca, nos cantos dos olhos, nas expressões. Cresci a ouvir dizer que era a cara do meu pai, mas desde há uns anos que comecei a ver a minha mãe em mim. E isso tranquiliza-me. Um dia, as minhas filhas também se vão olhar ao espelho e ver-me nelas. Acho que, muito mais do que deixar o meu nome num livro ou ser conhecida por algum feito, é essa a marca que lhes vou deixar, a elas, ao mundo, no mundo.

Tenho 40 e uma vontade enorme de viver.

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Isto até podia ser um diário da quarentena

Ainda no seguimento do desabafo anterior, hoje estive a dobrar os lençóis lavados e a arrumá-los, e não cabiam. Ainda fiquei parada em frente ao armário a pensar se teria comprado lençóis novos num qualquer acesso de sonambulismo, mas depois cheguei à conclusão que eu é que não sei dobrar os lençóis, ou arrumá-los. O Tiago achou um disparate muito grande a minha sugestão de, quando o tempo melhorasse, irmos os quatro para o meio da serra onde não haja pessoas e ficarmos lá duas horas a brincar às caminhadas enquanto a Lena vinha cá limpar a casa, com luvas e máscara. Mas e se tu soubesses que ela estava infectada, dir-lhe-ias para vir à mesma? Postas assim as coisas, é, de facto, um disparate, mas se me me prendessem e torturassem, eu aposto que ao fim de dois minutos e meio acabaria por confessar que continuo a achar uma boa ideia…

Adiante. A tele-escola começou. Eles agora não dizem tele-escola. Chamam-lhe “Estudo em Casa” para ser mais pomposo e moderno, não sei. Eu, que nem sou do tempo da tele-escola (lembro-me de ver apenas nos últimos anos, quando ainda não andava na escola), insisto em chamá-la pelo único nome que conheci e que me faz sentido. É como as pessoas que insistem em dizer Lourenço Marques ou que continuam a falar em contos de réis. Credo, estarei a ficar antiga?

Acho que há algo de muito louvável em professores, que nunca puseram um pé num estúdio de televisão, darem aulas para um país inteiro, ainda por cima sem tele-ponto. A sério, é de se lhes tirar o chapéu! Até se desculpa quando começam a aula a dizer “Amiguinhos”! Quanto aos conteúdos, achei o primeiro dia um pouco fraquinho. Isto de juntar dois anos numa só aula acaba sempre por fazer baixar o nível de exigência, mas as aulas de educação artística e física de hoje fizeram sucesso cá em casa, por isso há esperança.

De resto, achei que esta altura da quarentena era a ocasião perfeita para deixar de usar champô e passar a lavar o cabelo com sabonetes artesanais, sem químicos. Foi um grande alívio passar pela fase nojenta no método “No Poo” (em que o couro cabeludo retoma a produção normal do seu óleo natural, deixando o cabelo super oleoso numa fase inicial) e não poder sair de casa. Tem de haver algum ponto positivo nisto tudo! 

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Coisas que aprendi com a quarentena

1. A casa está sempre suja; por muito que varra ou aspire, parece sempre que acabou de passar um tufão pela sala.

2. Há coisas que se sujam só porque sim; é assim como eu estar a engordar só por respirar.

3. Prometo nunca mais barafustar pela forma como a senhora da limpeza faz as camas ou arruma a casa. Adoro-a e está no topo das pessoas que quero ver em primeiro lugar quando isto tudo acabar. Também vou aumentá-la, porque há que dar valor a quem nos limpa a sanita.

4. Ter comprado um beliche para as miúdas foi uma péssima ideia; mudar os lençóis da cama superior é uma tarefa hercúlea e nunca fica bem feito (ver ponto 3).

5. Tenho de aprender a ser mais crítica: acreditar que ia conseguir ler imenso foi das maiores frustrações dos últimos 38 dias.

6. A forma como a nossa família se adaptou à nova situação era bastante previsível e pode resumir-se em características fundamentais das nossas personalidades: Alice – a caseira; Inês – a desapegada; Tiago – o pragmático; eu – a montanha-russa.

7. O Tiago implementou um esquema infalível anti-contaminação para ir às compras tão minucioso que, eu, em comparação, mais valia esfregar a cara na prateleira do papel higiénico.

8. Vou fazer 40 anos daqui a 3 semanas. Tinha um festão planeado, num sítio espectacular, com DJ e copos até de madrugada. E agora, muito provavelmente, vou ter de me contentar com um bolo de iogurte e um convívio no Houseparty. A bem dizer, ainda não aprendi nada com isto, mas espero já o ter feito quando chegar o dia.

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Diário do isolamento #4

Estás em confinamento há 25 dias e esperas pelo resultado do teste há cinco. Já perdeste a conta à quantidade de fases por que passaste; só desde que fizeste o teste foram três. É normal que comeces a sentir pena de ti própria e as conversas de “isto é uma oportunidade que nos foi dada para sermos pessoas melhores” revolvem-te as entranhas. Quando pessoas que até tinhas em consideração se põem com essas conversas nas redes sociais, ainda ensaias umas respostas, mas acabas por deixar passar. Foi-te dada a oportunidade de não te deixares afectar, é o que é.

A espera faz-te sentir preguiça; tira-te a vontade de fazer seja o que for que não inclua comida e bebida. Por bebida, entenda-se algo com grau alcoólico suficiente para fazer as vezes de relaxante muscular. Para além disto, tiveste o pior dia de trabalho dos últimos meses (pior mesmo de mau e não de inexistente), por isso vá, enche o copo.

Quando acordas no 26.º dia, já tens a mensagem no telemóvel. Não percebes bem quando chegou, porque já estavas sentada ao computador quando te apercebes. Tinhas prometido ao marido que liam a mensagem juntos e ainda esperas um bocadinho, porque ainda nem são sete e meia, mas começas a ficar nervosa e vais ao quarto. Abrem a mensagem no escuro dos lençóis. Não sabem bem o que querem; se querem que dê positivo porque os sintomas foram leves e assim se contribuía para a imunidade da nação, se querem que dê negativo para aliviar as medidas de isolamento dentro de casa.

A mensagem diz:

ANALISE: Pesquisa de Coronavirus (COVID-19) [PCR]
RESULTADO: Não detectável

Achas que ficaram contentes. Pelo menos, tu ganhas subitamente vontade de fazer coisas. As tuas filhas acordam à vez e reagem à notícia com a ternura que é própria de cada uma. A mais nova dá saltos de contente e abraça-se a ti, porque ela gosta muito de abraços e beijinhos e já andava farta de te abraçar a barriga das pernas; a mais velha é menos efusiva, mas vai buscar um papelinho que guardou, há dias, “num sítio especial” a pedir a alguém ou alguma coisa para a mãe não ter o coronavírus dentro dela. E não é que resultou?

O resto do dia é passado sem grandes percalços enquanto esperas que te resgatem 21 mil palavras perdidas na cloud e te salvem o mês. As miúdas já podem, por fim, ir ao quintal e hoje quem vai ao lixo és tu. Está a ser um bom dia.

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