2020 ou o Ano da Paixão

E cá estou eu outra vez, a poucos dias do fim do ano, a fazer um apanhado das coisas mais importantes que me aconteceram ao longo dos últimos 12 meses. Sei que foi um bom ano. Ainda assim, socorro-me do telefone, onde tenho capturados os momentos mais importantes da nossa vida em família, porque se assim não fosse, provavelmente não me aperceberia de que consegui – melhor do que à primeira vista me parece – fazer jus à palavra que, no início do ano, escolhi como intenção para 2019: abrandar. Apesar de termos andado feitos saltimbancos em várias viagens (acho que nunca havíamos viajado tanto a quatro – Varsóvia, norte de Espanha, Toscana – sinal de que as miúdas estão mais crescidas e que já nos dá mais prazer a todos aventurarmo-nos fora de portas), sinto que foi um ano de muita introspeção, muito trabalho interior, muitas leituras e trabalho criativo.

Retomei as costuras, aprendi a bordar. Li 31 livros e obriguei-me a conhecer outros autores graças ao desafio que me coloquei de não comprar livros; ao invés, convidar amigos a emprestarem-me livros à sua escolha. Os amigos aderiram e eu fui gostando (ou não) de cada livro à minha maneira, com diferentes intensidades; descobri escritores que me haviam passado ao lado, como Eduardo Galeano, ou de quem nunca ouvira falar como a divertida Abbi Jacobson; retomei o contacto com pessoas que andavam fora do meu radar e estreitei relações com pessoas que muito admiro.

Aqui a lista dos livros que me emprestaram para este desafio:

De resto, foi um ano calmo, sem sobressaltos de saúde. O maior desgosto foi termos ficado sem a nossa gata Kika, que perdemos para a estrada ou para outra família; nunca saberemos o que lhe aconteceu. Um dia estava aqui, no outro não estava. Sem corpo nem rasto, resta-nos a imaginação e a esperança no coração.
Foi também o ano de dizermos adeus à horta. Depois de dois anos de intensa aprendizagem e comunhão com a natureza e a comunidade, chegou a altura de aceitar que precisávamos do (vasto) espaço tomado pela horta para encaixarmos outros elementos da nossa vida. Foi, provavelmente, uma das decisões mais difíceis que tive de tomar, principalmente porque a tomei sozinha, mas foi a coisa certa a fazer.

Em termos profissionais, cresci mais um bocadinho. Estou mais segura de mim, encontrei uma pessoa para me ajudar (ou terá sido ela a encontrar-me a mim?), e dei a minha primeira palestra work related but not only numa conferência para tradutores, que teve uma receção muito para lá dos meus sonhos.

No último trimestre do ano, fiz um retiro que me ajudou a encontrar a palavra que quero que defina o meu 2020: paixão. O facto de ir fazer 40 anos em 2020 pode ou não ter influenciado a escolha da palavra; não consigo deixar de sentir que estou perigosamente a chegar a meio da vida. Tenho pensado bastante no que ando aqui a fazer, no tempo que ainda tenho, no que quero fazer da segunda metade da minha vida, onde e com quem não quero desperdiçar o meu tempo. Talvez seja parvo isto, chegar aos 40 e começar logo a pensar na morte. Ou talvez seja apenas um marco da vida, cuja simbologia nos faz inevitavelmente ficar alarmados com a velocidade da passagem do tempo. «Quanto tempo mais vais esperar?», é a pergunta que me martela na cabeça. Quanto tempo mais vais esperar para fazer outra tatuagem, para escrever um livro, para ires ao Boom, para viajares mais, para aprenderes, para ensinares, para partilhares, para te apaixonares? Não quero esperar mais. Assim de repente, Janeiro parece-me um excelente mês para acabar com a espera.

Bom ano.

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Até sempre, Ornatos!

Custa-me a crer que sou repetitiva. Não falo sempre da mesma coisa, mas sou uma pessoa de paixões. Quem me conhece nas redes sociais sabe que nutro uma profunda paixão por determinadas bandas. Os Ornatos Violeta, que apareceram na minha vida há 20 anos, são uma delas e consigo ser bastante cansativa entusiasta a falar deles.

Ontem, fui vê-los a um Campo Pequeno a abarrotar de vozes em uníssono e braços no ar. Chegou a ser comovente; acho que a banda também achou isso. Uma pessoa ao meu lado chorou durante a “Deixa morrer”. Eu não cheguei a tanto; estava demasiado ocupada a ser feliz.

Há 20 anos, vi-os pela primeira vez num showcase na antiga Valentim de Carvalho no Chiado, quando ainda havia lojas de música com três pisos. Lembro-me de ficar rendida com a simplicidade e a energia do grupo. O Manel levava uma t-shirt com um buraco na manga, mas não fazia mal, porque já na altura ele tolerava mal estar de tronco vestido durante os concertos. Poucos anos depois, acabaram. Não voltei a vê-los ao vivo senão em 2012, num reencontro brutal no Coliseu. E depois no Alive, este ano, aonde foi só mesmo para os ver (nós a sairmos do recinto e malta a entrar para os The Cure). E ontem, que é capaz de ter sido o último concerto deles que vi.

Estou bem com isso. Sou daquelas pessoas – na verdade, a única que conheço – que acha que uma banda devia acabar antes de ficar aborrecida ou de editar álbuns elegíveis de passar na Comercial cinquenta vezes por dia (eu sei, sou ligeiramente pedante no que toca a música). Mas só assim o culto se mantém intacto, inocente, autêntico. E no caso dos Ornatos pode-se falar de um verdadeiro culto.

Foi muito bom. Tive momentos em que achei que a acústica não estava boa, em que parecia que eles se enganavam nos acordes, em que sentia que as vozes da multidão cantante abafavam a voz do Manel, mas acho que foi só ansiedade por medo de ser um concerto menos que perfeito (costumo ter ansiedade no início de alguns concertos muito aguardados; há mais alguém assim?). Mas a banda não falhou em nada, fosse na energia e na entrega durante o concerto, fosse no carinho e no assombro com que regressaram ao palco três vezes, a última já não ensaiada. Tocaram quase todas as músicas do Monstro, muitas do Cão e várias do Inéditos, inclusivamente a “Tempo de Nascer”, que eu nunca tinha ouvido ao vivo.

Nós, sempre tão gratos por eles existirem, cantámos até nos falhar a voz e despedimo-nos, muito a custo, mas de sorriso nos lábios, com um emocionado “Até sempre”.

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As barbies e as outras

No outro dia, mesmo que já tenha sido há umas semanas, continua a ser no outro dia, enquanto andava à procura de uma prenda para a Alice (que ainda está na fase das bonecas a quem já deixou de cortar o cabelo), passei por umas barbies daquelas que há agora em tamanho XXL. Achei-as estranhíssimas e passei à frente. Mas voltei atrás. Teria eu antipatizado imediatamente com uma boneca por representar uma mulher gorda? Não podia ser, tinha de perceber melhor. Olhei bem para elas todas, eram uns 3 ou 4 modelos, e percebi o que todas tinham em comum para além das formas avantajadas: estavam todas mal vestidas, com roupas largueironas, feias (aquilo a que chamamos de trapos) que lhes ficavam mal e não as tornavam nada atractivas. Ao lado, estavam as barbies a que sempre nos habituámos, as de cintura fina e cabelo sedoso, roupas elegantes e acessórios glamorosos. As magras, super glamorosas. As gordas, umas trapalhonas (de trapo). Devia ter tirado uma foto, mas estava com pressa e só voltei a pensar nisto mais tarde.

Isto incomoda-me bastante. Há uma tendência generalizada que todos aceitamos como normal que é a de nos fazerem crer que temos de esconder aquilo que foge aos parâmetros normais, sejam os cabelos brancos, as rugas, seja um corpo com medidas diferentes às que alguém ditou como aceitável. E nós aceitamos que nos digam o que devemos aceitar.

Eu não sou gorda. Já fui. Emagreci porque adoptei um estilo de vida saudável na sequência de um diagnóstico de saúde alarmante para a idade que tinha na altura. Faço desporto porque preciso, mas entretanto aprendi a gostar e a integrá-lo na minha rotina de tal forma que me sinto mal se a quebro. Portanto, não sinto que tenha de esconder gorduras. Também não sinto que tenha de esconder os brancos. Já deixei de pintar o cabelo e voltei a pintá-lo, porque não gostei de me ver assim. Foi um teste, um ano e meio sem pintar, mas houve um dia em que olhei para o espelho e vi uma mulher muito mais velha que não corresponde à forma como me sinto. Por agora continuo a gostar de mim morena.

Mas durante muito tempo senti que tinha de esconder a minha perna dos outros. Ainda sinto, vá. Mas estou muito melhor. Ainda assim, com toda a ajuda e força de vontade, não creio que algum dia me vá ser completamente natural escolher um vestido pelo joelho só porque me apetece, sem contar com os imponderáveis (dos quais podia fazer uma lista). Por sorte (ou resultado de um grande trabalho interior), tenho uma parte de mim muito “fuck society” que me faz revoltar-me perante as imposições da sociedade. Mas quem é que decidiu o que é que eu posso ou não usar? Mas quem é que me diz como é que eu me devo sentir? Não gostam? Pois não olhem. Eu tenho tanto direito a estar aqui – e a vestir-me como quiser – como vocês todos. Como resultado destas reflexões, nem sempre por esta ordem, costumo mandar a “sociedade” para aquela parte, ponho uma saia, levanto a cabeça, endireito as costas e atravesso na passadeira (atravessar na passadeira de saia sem sentir que ia desfalecer foi uma das grandes conquistas deste meu processo, é engraçado, porque a maioria das pessoas atravessa na passadeira sem pensar, os que uns dão como garantido, a outros dá uma grande trabalheira).

Gosto desta fase. Sinto-me livre.

Mas a fase “fuck society” não dura o ano todo. Talvez lá chegue um dia. Por agora, ainda tenho a fase oposta, em que tenho de me contrariar constantemente. Na fase em que me encontro desde antes do dia em que vi as barbies gordas, estou a passar por um bloqueio com determinadas aulas no ginásio que me transportam aos tempos da C+S. Volto a ser a miúda que nunca é escolhida para as equipas, que fica sempre para o fim, ela e os gordos. Eu e as barbies gordas. Deixei de ir a essas aulas, mas causa-me uma grande angústia (o porquê de ter deixado de ir, claro). E depois vejo bonecas à venda que se supõem ter como objetivo quebrar barreiras e estereótipos vestidas da forma como a sociedade acha que elas se devem apresentar de acordo com o seu tipo de corpo. E isso enfurece-me.

Com isto tudo, fico a pensar se deveria ter comprado o raio da boneca…

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Voz de rádio

– Lês sempre assim? – perguntou-me ele, depois de eu ter acabado de ler o excerto para análise. “Pronto, apanhou-me”, pensei. “Que palavra terá denunciado a minha má dicção? Será que fui sopinha de massa?” (Há determinadas palavras, ou sequências de palavras, que, encontrando-me eu num estado menos concentrado, realçam o indecoroso roçagar da minha língua nos dentes. Vezes há em que isto me deixa bastante desconfortável.)

– Como assim? – gaguejei, tentando arranjar tempo enquanto rodava o anel entre os dedos como se fosse a corda de um relógio que eu pudesse fazer andar para trás.

– Tens voz radiofónica. Pela forma como dás entoação às frases, parecia que estava a ouvir uma radionovela.

Não era, de todo, isto o que eu estava à espera de ouvir. Isto era uma espécie de elogio e há uma certa preparação mental necessária para receber um elogio – eu não me tinha preparado. Gracejei qualquer coisa como ter passado ao lado de uma carreira na rádio e censurei-me por ter tanto medo de tudo. Já íamos a meio do curso e ainda não me tinha feito ouvir. Não lera nada meu, tão pouco me voluntariara para ler algo dos outros. É uma característica minha precisar de algum tempo para me soltar. Não havendo nada de mal nisso, o problema é que gasto a maior parte do tempo a pensar no que vou dizer e o resto do tempo a culpar-me pelo que disse, ou não disse, e acabo por nada dizer. É um processo difícil este de arrancar a culpa de dentro de mim, que nasce e se propaga sem que eu tenha mão nela. Mal comparado, é como uma praga de piolhos que se detecta demasiado tarde e que depois requer doses abundantes de tempo e paciência para catar os parasitas. Tal e qual a minha culpa. Ultimamente ando a catá-la aos poucos.

Serviu o elogio para que decidisse ler o que me fora mandado escrever em casa: uma ideia, tão somente a ideia, para um romance. Eu apenas tinha ideia para um conto, que estava quase escrito, mas faltava-lhe o fim. Comecei por desculpar-me (caramba, faço sempre isso! ) e decidi improvisar (caramba, nunca faço isso!) para dar ao ex-conto a amplitude de futuro romance.

– Caramba, isso bem escrito dava um best-seller – disse ele. (É capaz de não ter dito caramba, mas eu quis enfatizar o momento. Foi o segundo ponto alto do dia que, convém dizer, fora bastante merdoso até à parte radiofónica).

No dia seguinte, na aula de cycling, enquanto desempenhava mecanicamente os movimentos orientados pela instrutora, realizei em 45 minutos aquilo em que ando a pensar há um ano. Está tudo lá: princípio, meio e fim. Tenho cenas inteiras escritas na nuvem do meu cérebro e, agora que já sei que forma tem, o livro que há de ser vai comigo para todo o lado. E, sim, também é sobre a culpa. Ou não venha a ser um livro escrito por mim.

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Desejo

Parece que ontem houve estrelas cadentes. Não sabemos, porque não as vimos, mas tentámos. À janela, perguntei-lhes que desejos tinham preparado para pedir assim que avistassem uma. A Alice disse que ia pedir às estrelas para voltar à escola antiga. Eu disse que o meu desejo era que ela fosse feliz na escola nova.

As lágrimas caíram-lhe sem pré-aviso. “Mas eu estou feliz na escola nova” , respondeu, aos soluços. “Só que tenho muitas saudades da minha escola antiga.”

Ela já percebeu isso. Já todos percebemos isso. As saudades que sente são só mesmo isso, saudades, e não o reflexo de qualquer mal-estar na escola nova. Prova disso são as novas amigas que a vêm buscar à porta, quando ela se agarra às minhas pernas. “Mamã, fica.”

Não tem sido fácil. Sobretudo depois de uma fantástica primeira semana na escola nova que em nada deixava adivinhar o que aí vinha. Mas vai passar. É o que todos nos dizem, é o que sabemos sem explicar bem porquê. Teria dado jeito uma estrela cadente para lhe pedir que passasse só um bocadinho mais depressa. Mas o tempo tem o seu tempo e, pronto, como nada podemos fazer para o apressar, também está bem assim.

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